A humilhação estava apenas começando. Em uma festa, Jéssica derramou champanhe em mim de propósito. Mais tarde, presas em um elevador, ela sibilou que eu era um "caso de caridade" momentos antes de os cabos se romperem.
A queda esmigalhou minha perna. Quando um socorrista olhou para baixo pela escotilha de emergência, podendo salvar apenas uma de nós por vez, ouvi a voz desesperada de Bernardo lá de cima.
"Salve a Jéssica!", ele gritou sem hesitar. "Salve ela primeiro!"
No hospital, ele justificou sua escolha dizendo que Jéssica era "delicada", enquanto eu era "forte" e aguentaria. Então, ele teve a audácia de me implorar, sua amiga de infância, para doar meu tipo sanguíneo raro para salvá-la.
Ele me carregou até a sala de doação e, no momento em que a bolsa encheu, correu com o meu sangue para o lado de Jéssica, sem nem olhar para trás.
Olhando para a marca de agulha recente em meu braço roxo, eu finalmente percebi que o garoto que eu havia salvado não existia mais. Era hora de salvar a mim mesma.
Capítulo 1
Dr. Dantas de Almeida deslizou um envelope branco impecável sobre a mesa de mogno polido. Ele parou a centímetros das mãos gastas de Larissa Amorim.
"Vamos ser diretos, Srta. Amorim."
Sua voz era suave como uísque caro, mas tinha uma frieza cortante que fazia o escritório luxuoso parecer um freezer.
"Dentro deste envelope há um cheque de cinco milhões de reais. É seu."
Larissa encarou o envelope. Cinco milhões de reais. Era um número impossível, uma cifra de um universo diferente daquele em que ela vivia, um mundo de aventais manchados de gordura e o cheiro constante de fritura.
"Junto com o dinheiro", continuou Dantas, seus olhos sem piscar, "há uma bolsa de estudos integral para qualquer universidade que você escolher. ITA, USP, você escolhe. Seu sonho, eu acredito."
O sonho dela. Aquele que ela havia sacrificado sem pensar duas vezes. Aquele que ela havia guardado em uma caixa empoeirada no fundo de sua mente.
"Qual é a pegadinha?", a voz de Larissa era quase um sussurro.
"A pegadinha", disse Dantas, recostando-se em sua cadeira de couro, "é o Bernardo. Você vai desaparecer da vida dele. Nunca mais vai contatá-lo. Você vai deixar de existir para ele."
As palavras a atingiram com a força de um soco. Suas mãos tremeram, e ela rapidamente as escondeu debaixo da mesa. Era isso. O momento que ela temia, o momento em que seu mundo se separaria oficialmente do dele.
Dantas de Almeida sorriu, um corte fino e cruel em seu rosto. "Sejamos honestos. Você é uma cozinheira que saiu de um orfanato. Um caso de caridade."
Suas palavras eram afiadas, feitas para ferir. Elas encontraram seu alvo.
"Você realmente acha que pertence ao mundo dele? Conosco?"
Larissa sentiu uma dor familiar no peito, uma dor oca que era sua companheira há meses.
"Ele tem a Jéssica agora. Ela se formou em Direito na USP, é uma igual. O futuro dela é brilhante. O que você tem? Quem você tem?"
Ele não precisava dizer. Larissa sabia que não tinha ninguém. O sistema a havia cuspido para fora, e ela esteve sozinha até Bernardo.
"Jéssica o adora. Ela pode ajudá-lo, elevá-lo. Você... você é uma lembrança de um passado que ele precisa esquecer."
A garganta de Larissa se fechou. Ela não conseguia falar, não conseguia respirar. Cada palavra era uma confirmação das inseguranças que a corroíam noite após noite.
Ela empurrou o envelope de volta. Um gesto pequeno e desafiador.
O sorriso de Dantas se alargou. Ele pegou um tablet de sua mesa e o virou para ela. A tela se iluminou com uma matéria de jornal.
A manchete gritava: "Herdeiro de Tecnologia Bernardo Monteiro e a Advogada Socialite Jéssica Castilho: O Novo Casal Poderoso da Faria Lima."
Abaixo da manchete, havia uma foto de Bernardo e Jéssica, de braços dados, sorrindo para as câmeras. Eles pareciam perfeitos juntos. Dourados. Intocáveis.
A visão de Larissa ficou turva. Uma única lágrima escapou e caiu em seu jeans surrado. Ela a enxugou rapidamente. Seu celular, agarrado em sua mão debaixo da mesa, escorregou. Ele bateu no chão de mármore com um barulho pavoroso. A tela se estilhaçou em mil pequenas fraturas, assim como seu coração.
Ela sabia que Dantas estava certo. Ela era da sarjeta. Ele era das estrelas. Seus caminhos se cruzaram na escuridão, mas agora que a estrela dele estava subindo novamente, ela era apenas uma sombra que ele estava deixando para trás.
Sua mente viajou, puxando-a para o passado.
Três anos atrás. O beco atrás da lanchonete estava úmido e cheirava a gordura velha e chuva. Foi lá que ela o viu novamente depois do colégio. Bernardo Monteiro, o garoto de ouro, o prodígio da tecnologia, estava caído contra uma caçamba de lixo, seu terno caro encharcado e sujo.
Ele tinha sido gentil com ela no colégio, uma vez a defendendo de valentões que zombavam de suas roupas de segunda mão. Ele não precisava, mas o fez. Ela nunca esqueceu.
Agora, o império de tecnologia de sua família, as Indústrias Monteiro, havia desmoronado da noite para o dia. Seus pais morreram em um suspeito acidente de jato particular. Ele havia perdido tudo. A notícia estava em toda parte.
Ela o encontrou em uma ponte mais tarde naquela semana, olhando para a água escura e agitada abaixo. O olhar em seus olhos era vazio, assustadoramente vazio.
Ela não pensou. Apenas agiu. Agarrou o braço dele, seu aperto surpreendentemente forte por anos carregando panelas pesadas.
"Não", ela disse, a voz trêmula.
Ele se virou para ela, seus olhos focando lentamente. "Por que não? Não sobrou nada."
"Porque você está vivo", ela disse, as palavras ferozes. "E enquanto você estiver vivo, pode lutar. Você tem que se salvar."
Ele olhou para ela, realmente olhou para ela, e algo piscou nas profundezas de seus olhos vazios. Uma pequena faísca.
"Eu te ajudo", ela prometeu, sua voz suavizando. "Você é inteligente. Pode voltar a estudar. Eu te sustento."
Bernardo a encarou, o maxilar cerrado. Então, uma única lágrima traçou um caminho pela sujeira em sua bochecha. Ele assentiu, um movimento quase imperceptível.
Ela o levou para sua quitinete minúscula e apertada. Ela abriu mão de seu próprio sonho, a carta de aceitação do ITA que guardava escondida em um livro, e gastou o dinheiro que economizou para a faculdade com ele.
Ela trabalhava em turnos duplos na lanchonete, suas mãos em carne viva e queimadas. Ela pegou um trabalho de limpeza noturno, seu corpo doendo de exaustão.
Mas valeu a pena.
Naquele pequeno apartamento, cercados pela pobreza e dificuldade, eles se apaixonaram. Ele esperava por ela, não importava o quão tarde, com uma tigela de sopa quente. Ele passava pomada em suas queimaduras com delicadeza, seu toque um conforto que ela nunca conhecera.
Ela pensou que aquele tipo de felicidade, pura e simples, poderia durar para sempre.
Então, ele conseguiu. Com o apoio dela, ele terminou a faculdade e, usando sua mente brilhante, construiu uma nova empresa das cinzas da antiga de sua família. Ele se tornou Bernardo Monteiro novamente. Rico. Poderoso.
Ela estava no fundo da sala na coletiva de imprensa quando ele anunciou o primeiro grande sucesso de sua nova empresa. Ele estava no palco, confiante e bonito, um rei reivindicando seu trono.
Larissa estava na multidão, sentindo uma distância crescente entre eles. O vestido barato que ela usava parecia uma fantasia. O ar, denso com o cheiro de perfume caro e champanhe, parecia sufocante.
"E eu não poderia ter feito isso sem minha incrível parceira", anunciou Bernardo, sua voz ecoando pelos alto-falantes.
O coração de Larissa deu um salto.
"Por favor, recebam, do escritório Castilho & Almeida, a brilhante Jéssica Castilho!"
Uma mulher deslumbrante com um sorriso perfeito e um vestido que custava mais do que o aluguel de Larissa por um ano subiu ao palco. Jéssica Castilho. A filha do advogado corporativo mais poderoso do estado, Dantas de Almeida.
Bernardo sorriu para Jéssica, seus olhos cheios de uma admiração que Larissa não via há meses. Eles ficaram lado a lado, uma imagem perfeita de poder e sucesso.
A mídia enlouqueceu. Eles foram instantaneamente apelidados de o novo casal poderoso da Faria Lima. Larissa assistiu, seu coração afundando, enquanto Bernardo colocava o braço em volta da cintura de Jéssica.
Ela pensou que eles estavam anunciando um noivado.
Então, sob os flashes das câmeras, Bernardo se inclinou e beijou Jéssica Castilho.
O mundo se estilhaçou.
Larissa fugiu. Acabou em um bar barato, o uísque queimando sua garganta. As promessas que ele fez em sua pequena quitinete ecoavam em sua mente. "Vou me casar com você, Lari. Um casamento de verdade. Você merece o mundo."
Ela tinha o dinheiro dele agora, uma mesada generosa que ele insistia que ela aceitasse. Mas ela não queria o dinheiro. Ela queria o homem que a abraçava quando ela tinha pesadelos, o homem que beijava suas mãos queimadas.
Ela decidiu ali mesmo. Ela iria embora.
Seu telefone tocou. Era Bernardo.
"Lari, onde você está? A festa está começando." Sua voz era quente, familiar.
"Bernardo", ela começou, sua própria voz embargada por lágrimas não derramadas.
"Apenas venha, ok?", ele insistiu, no tom brincalhão que usava quando queria algo. "Não é uma festa sem você."
Uma parte pequena e tola de seu coração se encheu de esperança. "Você pode vir me buscar?"
Silêncio. Uma pausa longa e pesada se estendeu na linha.
"Eu... eu não posso", ele finalmente disse, a voz tensa. "O pai da Jéssica está aqui. É importante que eu fique com eles. Vou mandar um carro."
O último pingo de esperança morreu. Era sempre a Jéssica. Era sempre sobre o que era "importante".
Ela desligou.
Larissa vestiu a melhor roupa que tinha, um simples vestido preto. Ela foi para a festa, um fantasma no banquete.
Bernardo e Jéssica estavam na entrada principal, cumprimentando os convidados. Pareciam da realeza.
Larissa tentou passar por eles sem ser notada, mas os olhos afiados de Jéssica a pegaram.
"Larissa! Você veio!" O sorriso de Jéssica era brilhante, mas seus olhos eram frios. "Bernardo estava tão preocupado."
Larissa sentiu o olhar de Bernardo sobre ela. Era distante, indecifrável. Ele não a queria ali. Ela podia ver no leve tensionar de sua mandíbula.
"Que bom que você veio", disse Bernardo, mas suas palavras soaram vazias.
Jéssica, sempre a anfitriã perfeita, pegou uma taça de champanhe de uma bandeja que passava. "Você deve estar com sede. Aqui."
Enquanto ela a entregava a Larissa, sua mão "escorregou". O champanhe encharcou a frente do vestido de Larissa.
"Oh, meu Deus! Me desculpe!" O pedido de desculpas de Jéssica foi alto e dramático, atraindo a atenção de todos.
Larissa ficou ali, pingando e humilhada, os olhos da elite da cidade cravados nela.
Bernardo deu um passo à frente, tirando um lenço do bolso. Ele deu batidinhas em seu vestido, seu toque impessoal. "Está tudo bem. É só uma mancha."
"Deixe-me levá-la para se limpar", ofereceu Jéssica, seu braço se entrelaçando no de Larissa. "Bernardo, voltamos logo."
Bernardo assentiu, seu foco já se voltando para um investidor poderoso.
Larissa se deixou ser levada, uma marionete em uma corda.
Elas acabaram em um elevador opulento e vazio. No momento em que as portas se fecharam, a máscara amigável de Jéssica caiu.
"Escuta aqui, sua coitadinha de esmola", ela sibilou, sua voz venenosa. "Você pegou o dinheiro. Agora saia da vida dele."
Larissa a encarou, sem palavras.
"Você realmente achou que aquele cheque era um presente? Foi uma transação. Você foi paga. Agora desapareça antes de causar mais problemas."
"Eu..."
De repente, o elevador deu um solavanco violento. As luzes piscaram e morreram, mergulhando-as na escuridão. Houve um rangido aterrorizante de metal, e a cabine começou a cair.
Larissa foi jogada contra a parede, sua cabeça batendo no corrimão de latão. A dor explodiu atrás de seus olhos. Jéssica gritou, um grito agudo e penetrante.
O elevador parou com um estrondo. A perna de Larissa estava torcida em um ângulo antinatural, e ela podia sentir algo quente e úmido encharcando seu jeans.
Através da névoa de dor, ela ouviu a voz desesperada de Bernardo de cima. "Jéssica! Larissa! Vocês estão bem?"
"Bernardo!", ela gritou, a voz fraca. "Me ajuda!"
Um momento depois, o rosto de um socorrista apareceu na escotilha de emergência acima. "Os cabos estão instáveis! Só podemos puxar uma pessoa de cada vez! Quem vai ser?"
Os olhos de Larissa encontraram os de Bernardo na luz fraca de emergência. Ela viu seu desespero, seu medo.
"Salve a Jéssica!", ele gritou, sem um momento de hesitação. "Salve ela primeiro!"
As palavras ecoaram no espaço pequeno e quebrado. Salve ela primeiro.
Uma lágrima, misturada com o sangue do corte em sua testa, traçou um caminho por sua bochecha. Tinha acabado. Estava verdadeira e finalmente acabado. Ela fechou os olhos e deixou a escuridão levá-la.
De volta ao escritório de Dantas de Almeida, a memória se desvaneceu. Larissa olhou para o homem que havia orquestrado seu coração partido. Ela pegou a caneta da mesa dele. Sua mão estava firme agora.
Ela assinou o acordo.
Então ela pegou o cheque de cinco milhões de reais, levantou-se e saiu sem dizer uma palavra, deixando para trás os pedaços estilhaçados de sua antiga vida.