A escuridão era fria e sem fim. Eu flutuava nela, revivendo meus últimos momentos: o cheiro de mofo da favela, a febre me queimando, meu irmão João chorando enquanto segurava minha mão. Vinte anos. Vinte anos de miséria desde aquele dia fatídico. O dia em que Pedro, meu irmão adotivo, me vendeu por um punhado de comida, condenando-me a uma vida de sofrimento. Eu vi meus pais adotivos, os Silva, desolados sobre meu corpo sem vida. O arrependimento deles era uma faca, mas a dor já havia me consumido. Pedro, pálido, talvez por culpa, talvez por medo do escândalo que mancharia seu nome, estava lá. E Ana, sua irmã mimada, que tomou meu lugar na minha ausência, chorava "lágrimas de crocodilo" agarrada à mãe. Eles se arrependeram. Mas de que adiantava? Meu fim já estava escrito. Ou assim eu pensava. De repente, uma luz forte me cegou. Abri os olhos, o ar invadindo meus pulmões com uma urgência dolorosa. A primeira coisa que vi foi o teto familiar da casa dos Silva. O mesmo teto de vinte anos atrás. Então, ouvi a voz irritante de Pedro: "Pai, mãe, eu não aguento mais! Essa casa é um inferno! Eu quero ir embora, tentar a vida na cidade grande!" Eu estava no meu antigo quarto. Minhas mãos eram as de uma jovem, sem as cicatrizes e a aspereza de anos de trabalho forçado e doença. Eu voltei do inferno. Voltei para o dia em que tudo começou. Pedro insistia: "Eu já tenho dezessete anos, não sou mais criança! E a Maria vai comigo. Ela é minha irmã, tem que cuidar de mim!" Eu caminhei até a porta, espiando pela fresta. Ele queria me arrastar para o mesmo destino de desgraça. Mas desta vez, não. Pedro tentou pegar minha mão, o sorriso manipulador se formando em seus lábios. Recuei, as palavras saindo firmes: "Não." O choque no rosto dele era quase cômico. Sem remorso, encarei os olhos que me viram ser vendida por comida: "Eu disse não. Eu não vou a lugar nenhum com você, Pedro." Os Silva e Pedro ficaram surpresos. Eu nunca o havia desafiado antes. Agora, eu daria o primeiro passo para reescrever meu destino e o de João.