Meu pai morreu quando eu era pequena. Minha mãe trabalhava como doméstica antes do acidente; voltando do serviço foi atropelada. Eu fazia faculdade aos dezenove, mas tive que abandonar. Já trabalhava na cafeteria desde os dezoito; depois do acidente precisei arrumar o segundo emprego pra pagar remédio, cuidadora e as contas que começaram a chegar. A cirurgia que pode devolver a minha mãe a andar tem 90% de chance de sucesso, mas custa 50 mil dólares. A hipoteca da nossa casa soma 20 mil. Eu trabalho feito louca pra segurar tudo.
Consigo conciliar as folgas: quando consigo juntar a folga da cafeteria com a da boate no mesmo dia, descanso o corpo; a mente não para. Não tenho fé no sentido religioso e também não crio falsas esperanças; sou realista e acredito no trabalho e na dignidade. Gosto de sonhar, mas prefiro planejar.
No palco da boate eu uso máscara e luz baixa. Danço de lingerie, técnica e reserva. Nunca aceitei "programas" deixei isso claro desde o primeiro dia. Sou virgem. Meu limite é inegociável. Se alguém invade o espaço, eu corro. A máscara me dá anonimato e controle; a escuridão dá distância. Eu sei o preço do meu corpo no mercado, e recuso qualquer negociação que envolva entrega além da dança.
- Não, eu não faço programa - eu digo direto se alguém tenta forçar conversa.
- Só um carinho, só um beijo - eles insistem, sempre.
- Aquele beijo você guarda - respondo curto, firme. - Aqui eu danço, não troco carinho por dinheiro.
Na cafeteria, o clima é outro. O cheiro do café me acalenta; as pessoas voltam toda manhã e, sem saber, me ajudam a respirar. Atendo, sorrio, monto bandejas, limpo mesas. O trabalho me dá ritmo. A dona do croissant das oito e meia já me chama pelo nome.
- Bom dia, Amélia.
- Bom dia, Dona Victoria. O de sempre - respondo, e é verdade. A rotina tem conforto.
A rotina também tem cansaço. São horas de sono roubadas, provas da faculdade largadas e planos adiados. Pago remédio, pago a cuidadora, nego qualquer luxo. Às vezes penso nas portas que eu não abri por pressa de colocar comida na mesa. Amigos dizem pra eu procurar bolsa, que existem possibilidades. Talvez. Mas quando tem hipoteca e conta médica, a pressa exige o dinheiro certo agora.
A minha mãe é o motor. Mesmo imobilizada, ela mantém o humor, lembra piadas do passado e, quando pode, me enche de cuidado. Eu cuido dela e, quando volto cansada, sinto o cheiro do sabonete barato dela e lembro porque luto. Às vezes a vejo dormir e me pego lista de contas na cabeça: quanto falta, quanto falta, quanto falta. Faço contas como quem monta um mapa de fuga.
- Filha, não se esquece de sonhar - ela sussurra num dia bom.
- Eu não esqueci - eu respondo. - Só guardei o sonho numa gaveta e peguei a vida no colo.
Na boate, cada show é uma negociação de limites. Tem cliente que respeita, tem cliente que insiste. Aprendi a medir a distância com o corpo e com a palavra. Não sou vítima; sou profissional. Uso a dança como trabalho e como barricada. Ninguém precisa saber mais de mim do que eu quero.
Quando o dinheiro entra, a contabilidade é rápida: remédio, comida, hipoteca, contas do mês, guardo uns trocados. Não é poupança bonita: é combustível. E mesmo assim, às vezes, bater no zero apertado é normal. Ainda assim, não deixo a humilhação entrar. A minha dignidade é comprar o remédio da minha mãe e dizer não na cara de quem acha que pode comprar tudo.
Tenho preguiça de fé, mas não de esperança medida. Planejo com a frieza de quem calcula cada passo. Vou juntando centavo por centavo. Tem dias que a exaustão fala mais alto; outros, a raiva vira força.
- Você merece mais - me diz a minha amiga Lu, quando a gente se encontra no vestiário da cafeteria depois do expediente.
- Talvez mereça mesmo - respondo, sorrindo. - Mas agora eu mereço pagar a conta e ver a minha mãe melhorar.
A gente tem também pequenas alegrias: um dia em que sobra troco e compro um sorvete, uma mensagem da minha mãe dizendo que sente orgulho, um cliente que agradece. Essas coisas são combustível. Eu guardo no meu coração.
- Quando tudo isso passar, tu vai fazer o quê? - perguntou a Lu, um dia desses, com olhar curioso.
- Volto pra faculdade, termino, e faço a tal vida que eu escrevi nas minhas listas - respondo. Sempre.
Quando consigo um dia livre, durmo de verdade. Deito no escuro e deixo meu corpo resetar. A mente insiste, mas o corpo agradece a folga. Escuto música, escrevo ideias soltas numa agenda barata, sonho pequeno: voltar à faculdade, terminar o curso, ter um emprego que me dê tempo. Coisas simples. Coisas que parecem luxo quando a conta do hospital pesa.
Não quero romantizar a vida. Não quero que me olhem com pena nem com fascínio pelo palco. Quero respeito pelo meu trabalho e pelos meus limites. Quero que a pessoa ao meu lado entenda que dançar à noite e servir café pela manhã é escolha forçada pela necessidade, e que eu não sou menos por isso.
A cada manhã, quando entro na cafeteria, ajeito o avental e respiro um segundo. A cada noite, quando coloco a máscara, respiro outro segundo. Entre esses dois segundos eu vivo tudo: cansaço, raiva, limite, cálculo e um cuidado enorme pela minha mãe. E é esse cuidado que me move. Trabalho, guardo, corro, digo não. Quando a cirurgia acontecer e, quem sabe, a minha mãe der os primeiros passos, eu posso finalmente tirar a máscara sem medo, não da plateia, mas da vida. Até lá, eu sigo, inteira do meu jeito: pequena, firme e determinada.