O som do despertador era o primeiro ataque do dia. Para Maria, a sensação de sufocamento já vinha antes mesmo de tirar os pés da cama. Três mensagens da mãe, Dona Clara, ditavam cada passo: "Bom dia, filha. Não coma nada da cantina, você sabe que aquelas coisas não prestam." "Não se esqueça da sua aula de cálculo às 10h." "Vi que você usou 15 reais ontem à noite. Mande uma foto do comprovante." Cada centavo, cada amizade, cada escolha controlada, como se Maria fosse uma propriedade. A "mini-geladeira" no quarto, reabastecida com os alimentos aprovados pela mãe, era a prova física da sua prisão. Então, o desastre. Na fila da cantina, faminta após uma aula extra, ela tentou comprar um salgado. "Transação não autorizada." A humilhação invadiu suas bochechas. Sua mãe havia bloqueado o cartão, castigando sua ousadia de tentar viver. Mas então, uma voz gentil: "Deixa que eu pago pra você." João Pedro, um colega de literatura, pagou seu almoço, oferecendo um copo de água fresca no seu deserto particular. A normalidade frágil durou segundos. O celular explodiu. "Mãe" piscava na tela. "Maria da Silva, posso saber o que significa isso? Por que você tentou passar o cartão na cantina? E quem é esse rapaz que acabou de pagar para você?" A humilhação, agora pública, se tornou insuportável. "Homem nenhum é 'gentil' de graça, Maria. Você é muito ingênua. Levante-se dessa mesa agora mesmo e volte para o seu quarto. Agora!" Maria sentiu o olhar de João Pedro, o medo em seus olhos enquanto ele se afastava. A risada da mãe ecoou: "Adulta? Você não consegue nem se sustentar. Enquanto você viver do meu dinheiro, você vive sob as minhas regras." As lágrimas subiram. A derrota era total. Mas não mais. Enquanto a mãe vociferava sobre ingratidão, uma raiva fria e cortante acendeu. A humilhação de hoje não era mais uma na lista. Era a última. A submissão morria ali. No lugar dela, uma consciência brutalmente clara despertava.