Do lado de fora, o calor da Louisiana me acertou como um tapa: úmido, denso, impossível de ignorar. Respirei fundo - ou pelo menos tentei. O ar cheirava a desinfetante barato, café requentado e alguma coisa azeda que eu preferia não identificar.
"Saint Martine Community Relief Base," dizia a faixa presa com fita no portão. Letras tortas, manchadas de chuva. Ninguém ali estava preocupado com estética. Só com sobrevivência.
A mulher da van - cujo nome eu já tinha esquecido - me entregou minha mochila e desejou boa sorte. Sorte. Sorri com a educação de quem cresceu para agradar e fechei o zíper até esmagar o tecido de uma blusa dentro. Tarde demais.
Atravessar aquele portão foi como entrar num mundo paralelo. Gente indo e vindo com pranchetas, galões de água, caixas de suprimentos. Crianças brincando perto de um gerador barulhento. Homens suados montando uma barraca que parecia grande demais para a pressa em que estavam. Ninguém notou minha chegada - e isso, de algum modo, foi um alívio.
Eu não queria ser vista. Só queria não sumir.
Fiquei parada alguns segundos, observando, até que um rapaz com colete laranja apontou para um prédio ao fundo.
"Alojam as mulheres naquele ginásio ali, senhora."
"Obrigada," murmurei, mesmo sem saber se ele ouviu. Minhas pernas começaram a andar antes que minha cabeça decidisse se era mesmo pra lá que eu queria ir.
No caminho, passei por uma fila de doações, por um par de olhos curiosos de uma adolescente que usava um vestido amassado e chinelos com corações. Ela sorriu pra mim. Eu não soube sorrir de volta.
O ginásio era abafado. Um teto alto, ventiladores presos em suportes improvisados, colchões no chão separados por cortinas improvisadas com lençóis e varais de metal. Mulheres sentadas, algumas conversando em espanhol, outras só encarando o nada. Uma criança dormia com uma boneca encardida no colo. Um rádio tocava música gospel muito baixo, como se tivesse medo de incomodar.
Deixei minha mochila num canto vazio e me sentei. E ali fiquei.
Por um tempo que não sei medir, só fiquei ali.
Talvez uma hora. Talvez dez minutos. Talvez desde Belle Rive.
Meu ex-marido dizia que eu dramatizava tudo.
"Você é intensa demais, Isabelle. Vê tragédia até onde não tem."
Ele nunca viu uma casa virar lama.
Não literalmente, pelo menos. Quando o furacão passou, a cidade virou uma pintura borrada. Belle Rive deixou de ser Belle. O telhado caiu. As paredes cederam. A água levou o que restava do nosso armário de casamento, e por algum motivo bizarro, meu vestido de noiva sobreviveu. Encharcado, embolorado, mas ainda lá. Como se fosse a única coisa que se recusasse a partir.
Eu fui embora dois dias depois. Não porque não tinha mais casa, mas porque não tinha mais silêncio.
Quando tudo desmorona por fora, as pessoas finalmente olham pra você com empatia. Mas quando desmorona por dentro? Você vira exagerada. Amarga. Ingrata. Escolhi a base em Saint Martine porque era longe o bastante pra não ouvir ninguém dizer "pelo menos você tá viva".
Às vezes, esse "pelo menos" dói mais que a perda.
Alguém me ofereceu uma garrafa d'água. A garrafa estava quente. A água também. Mesmo assim, bebi. Sentia areia na garganta desde Belle Rive.
"Você tá chegando hoje?"
A voz vinha de trás de uma cortina improvisada. Virei devagar. Uma mulher, talvez na casa dos trinta, cabelos ruivos presos num coque desleixado. Não era hostil. Nem simpática. Só... real.
Assenti.
"Boa sorte com os mosquitos," ela disse, antes de desaparecer outra vez.
Suspirei. Não era hostil. Mas ainda era cedo pra confiar em alguém que parecia saber exatamente como aquilo tudo funcionava. E eu não sabia se queria me misturar. Talvez preferisse, por enquanto, ser só a estranha. A mulher sem história.
Mais tarde, depois de uma refeição que mal lembro o gosto, alguém me chamou pra ajudar com mantimentos. Eu disse sim porque não sabia como dizer não. Puxei caixas, suei, tropecei. Um dos caras me mandou levantar com as pernas, não com as costas. Agradeci. Ele não ouviu.
Foi quando eu vi ele.
De costas, empilhando sacos de cimento com a facilidade de quem não pensa no próprio peso. Camisa suada colada nas costas, braços marcados por sol e esforço. Silencioso. Rígido. Preciso. O tipo de homem que parece sempre medir o mundo em centímetros e falhas.
Ele virou o rosto um instante. E por um segundo, nossos olhos se cruzaram.
Não foi um momento mágico. Não teve música de fundo. Eu nem saberia descrever a cor dos olhos dele depois.
Mas algo nele... doeu.
Não como dor boa. Nem como lembrança. Doeu como uma intuição antiga. Como se meu corpo soubesse reconhecer outro corpo quebrado.
Abaixei o olhar antes que virasse pergunta.
Voltei pro ginásio com cheiro de suor e cimento nas mãos. As luzes estavam mais fracas. A noite havia caído e o rádio agora tocava uma música que minha avó cantava baixinho quando lavava roupa: uma canção triste em francês, que falava de amor e de guerra e de perdas que não se curavam.
Me enrolei num cobertor doado, que cheirava a lavanda e outras pessoas.
E pensei:
Eu não vim aqui pra me curar.
Nem pra recomeçar.
Vim pra fugir.
Só que até onde sei... não existe lugar do mundo onde a gente consiga fugir da gente mesma.