O portão da casa era azul desbotado e carregava o número 43 em azulejos portugueses que pareciam meio fora do lugar. Achei isso irônico. Eu tinha atravessado um continente inteiro, deixado minha vida inteira em caixas no armário da minha irmã, e o primeiro sinal de vida da nova fase era um número em cerâmica pintada que parecia saído do bairro de Lavapiés.
Suspirei, com a mochila pendendo do ombro e a mala arrastando na calçada.
"Você merece mais do que alguém que tem dúvidas", ele disse.
Dois dias antes do voo. Dois.
E o mais humilhante é que eu quase pedi pra ele reconsiderar.
Toquei a campainha. Uma vez. Depois outra.
O som era meio rouco, como se o sino tivesse rinite. Ninguém respondeu.
Maravilha. Começamos bem.
Revirei o celular pra checar a mensagem da dona da casa - Sky, nome de estrela ou de marca de internet - e confirmei que eu tinha avisado do horário. Ela disse: "Tranquilo! Estaremos por aqui."
Toquei de novo. E de novo.
Foi então que a porta se abriu com um baque e uma explosão de cor. A mulher que apareceu usava um moletom velho com estampa de abacates surfando e o cabelo num coque desgrenhado que mais parecia um ninho de pássaro rebelde.
- Você deve ser a espanhola abandonada! - ela disse com um sorriso largo. - Bem-vinda à Casa 43!
Não tive tempo de responder. Ela me puxou pra dentro com um abraço meio colado de protetor solar, desodorante cítrico e alguma outra coisa que eu não consegui identificar de cara - talvez maconha? Talvez alegria pura?
- Sou a Sky, como o céu - disse, soltando meu braço. - Mas não sou tão volátil quanto pareço, prometo.
A entrada da casa parecia uma colagem mal recortada de Pinterest: plantas penduradas, tapete amarelo queimado de sol, um sofá de veludo verde com almofadas que definitivamente já viveram dias melhores. Tinha cheiro de café velho misturado com maresia, e por algum motivo isso não me irritou.
- Deixa a mala aí, depois você leva pro quarto. A Beyoncé tá cochilando no corredor, tenta não pisar nela.
Achei que fosse brincadeira. Até ver a cadela. Uma Golden retriever bege, enorme, dormindo com as patas abertas e a língua pra fora como se a vida fosse um eterno sábado de manhã.
- Ela é meio dona da casa, tá? - Sky avisou, já indo na frente. - Às vezes mais do que o Leo.
Leo. O outro morador.
Ela me levou até a cozinha, e a primeira coisa que vi foi ele: sentado num banquinho alto, de camiseta cinza e fones de ouvido enormes, digitando alguma coisa no laptop com uma concentração digna de cirurgia cardíaca.
- Leo, essa é a Sofia. - Sky apontou pra mim como se eu fosse uma pizza recém-entregue. - Ela foi abandonada, voou sozinha, sobreviveu à Qatar Airways e agora tá oficialmente entre nós.
Ele tirou um dos fones, me olhou rápido e acenou com a cabeça. Não sorriu. Mas também não pareceu grosseiro - só... ausente. Tipo gente que vive mais no mundo interno do que no externo.
- Oi - disse ele, e voltou pro computador como se nada tivesse acontecido.
- Ele é assim mesmo - sussurrou Sky, me servindo um copo de água gelada. - A gente ama, mas é tipo como adotar um gato arisco: um dia ele deixa você fazer carinho, no outro morde seu dedo.
Sentei na bancada com a água nas mãos e tudo pareceu desacelerar. Aquele era o lugar onde eu ia morar pelos próximos meses.
Com uma surfista hiperativa, um engenheiro emocionalmente indisponível e uma cachorra chamada Beyoncé.
E o mais estranho de tudo? Era como se tudo isso fizesse algum sentido.
- Eu nem sei o que tô fazendo aqui - murmurei.
Sky me encarou por dois segundos e disse:
- Ninguém sabe. Essa é a mágica.
Silêncio. Até que Beyoncé apareceu, farejou meu tornozelo, soltou um bocejo barulhento e deitou a cabeça no meu pé.
Meu peito apertou. Mas foi diferente dessa vez. Não era dor. Era um tipo de alívio quieto. Tipo quando a turbulência passa e o avião volta a ficar estável.
- Seu quarto é o do andar de cima, o que pega mais sol de manhã - Sky avisou. - Espero que você goste de luz.
- Eu costumava gostar. Em Madri. - Pausei. - Ainda tô descobrindo quem eu sou fora de Madri.
Ela me olhou com carinho. Depois sorriu.
- Bem-vinda ao clube dos que ainda estão descobrindo.
Enquanto subia com a mala escada acima, senti um cansaço que não era só do voo. Era um cansaço de tentar demais, por tempo demais.
O quarto era simples: cama, uma estante com livros desorganizados, um varalzinho com luzes pisca-pisca e uma janela enorme que mostrava o céu azul-pálido da Cidade do Cabo.
Larguei a mala. Me deitei sem tirar os sapatos.
E pela primeira vez em muitos dias, dormi.
Acordei com uma luz branca estourando pelas frestas da janela, invadindo o quarto com uma força quase agressiva. Por um segundo, achei que ainda estivesse em casa, no quartinho dos fundos da minha irmã - mas ali não havia cheiro de café com canela nem o som dos passos da minha mãe indo e vindo pelo corredor.
Ali só havia o sol da África do Sul e um silêncio que, curiosamente, não doía.
Levantei devagar. O quarto tinha cara de espaço vivido por outras vidas. Alguém já tinha colado adesivos na borda do espelho, deixado marcas de caneca na escrivaninha, pendurado um papel com "be kind to your mess" bem no centro da parede.
Pensei em tirar tudo, recomeçar do zero. Mas depois achei que talvez fosse melhor assim: chegar no mundo dos outros e, por um tempo, não saber exatamente onde termina o deles e começa o meu.
Desci ainda de meias. A escada de madeira fazia um rangido leve que me lembrava a casa da minha avó em Toledo. A cozinha estava vazia. Só o barulho do ventilador de teto e, no chão, a Beyoncé de novo - dessa vez, com um par de tênis na boca.
- Isso não é seu - disse em voz baixa, tentando resgatar o calçado com delicadeza.
Ela olhou pra mim, mastigou mais uma vez e soltou como se entendesse perfeitamente que eu era novata ali. Uma nova cidade me esperava lá fora.
Mas, antes de tudo, eu precisava de um café. E, talvez, de um pedaço de mim que ainda não tivesse sido engolido pelo que ficou pra trás.