Baixar App hot
Início / Romance / Silêncio Antes do Trovão
Silêncio Antes do Trovão

Silêncio Antes do Trovão

5.0
5 Capítulo
Ler agora

Paris, 1950. Um homem carrega segredos que nem o tempo ousou apagar. Após uma longa e enigmática travessia da América Latina até a Europa, Miguel Santoro chega à capital francesa em busca de respostas - e de si mesmo. Herdeiro de uma linhagem marcada por perdas e silêncios, ele se vê envolvido em um emaranhado de arte, espionagem e memórias de guerra que ainda assombram as vielas da cidade-luz. Entre encontros inesperados e paixões proibidas, Miguel descobre que o verdadeiro campo de batalha nem sempre está nas trincheiras, mas nas escolhas silenciosas que moldam destinos. Em meio a pinturas ocultas, cartas cifradas e alianças improváveis, ele terá de enfrentar a verdade sobre seu passado... e o preço da redenção. "Silêncio Antes do Trovão" é um romance intenso e poético sobre identidade, resistência e o poder dos segredos que ecoam mesmo após o fim da guerra.

Índice

Capítulo 1 A Partida

Buenos Aires, 1952.

O sol ainda não havia rompido completamente o horizonte, mas a cidade já despertava lentamente, envolta numa névoa tênue que filtrava a luz alaranjada do amanhecer. As ruas estreitas e empedradas da capital portenha começavam a ganhar vida aos poucos, com os passos apressados de trabalhadores, o tilintar das rodas dos carrinhos de feira e o canto distante dos primeiros pássaros anunciando o novo dia. O ar estava impregnado de uma mistura inconfundível - o salgado do Rio da Prata, o cheiro forte do café recém passado e as notas melancólicas do bandoneón, que escapavam das janelas abertas das casas simples e dos cafés da esquina.

No cais do porto, o cenário era outro. Era um mundo à parte, pulsando com a energia bruta do movimento incessante: trabalhadores carregando caixas e sacas, gritos e ordens em vozes roucas, o ranger das correntes de ferro e o apito distante dos navios a vapor formando uma sinfonia caótica. Era ali, naquele emaranhado

de sons, odores e rostos desconhecidos, que Rafael Delgado encontrava seu destino prestes a mudar para sempre.

Rafael estava parado na beira do cais, observando o navio Santa Isabel que repousava majestoso, como um gigante adormecido pronto para cruzar o Atlântico. Seu corpo tremia levemente, mas não era só o frio matinal que o fazia estremecer. Havia um turbilhão de emoções invisíveis agitadas dentro dele - medo, esperança, incerteza e uma saudade lancinante do que abandonaria.

A pele morena clara, que brilhava sob a luz fraca da manhã, carregava as marcas de sua ancestralidade latina - uma mistura vibrante de raízes indígenas e espanholas que lhe davam um rosto forte e expressivo. Seus olhos castanhos profundos, escuros como a noite, estavam fixos no horizonte, buscando algo que ele ainda não sabia nomear. O cabelo preto, sempre penteado com cuidado, hoje parecia rebelde, solto ao vento frio que soprava do rio.

Rafael segurava firmemente uma mala de couro já desgastada pelo tempo, símbolo silencioso de todas as jornadas que ele já havia feito e das que ainda teria de enfrentar. Na outra mão, uma pasta sutilmente dobrada continha uma carta que mudaria sua vida - uma carta da mãe, entregue em segredo e cheia de enigmas.

A carta falava de Henriette, uma mulher em Paris que guardava respostas. Respostas que Rafael nunca imaginou buscar, mas que agora se tornavam seu único farol. O passado oculto de sua família, os segredos enterrados sob camadas de silêncio, tudo parecia estar convergindo para aquela decisão.

Enquanto o vapor do navio escapava em baforadas, pintando o ar com uma fumaça cinzenta, Rafael sentiu um arrepio na espinha. Não era só o frio do rio - era a consciência da magnitude do que estava por vir. Atrás dele, a cidade começava a pulsar em sua rotina diária: as mulheres apressadas carregando sacolas, os homens discutindo futebol com paixão nas esquinas, e o tango melancólico que brotava dos becos e cafés como uma história contada em notas e silêncios.

Miguel, seu amigo leal desde a infância, apareceu entre a multidão e caminhou até ele, o rosto iluminado por um sorriso misto de orgulho e apreensão. Os cabelos castanhos desgrenhados e a pele bronzeada pelo sol do porto eram um contraponto à seriedade que envolvia Rafael naquele momento.

- Está mesmo decidido? - perguntou Miguel, com uma voz carregada de emoção. - Paris é um mundo completamente diferente. Você sabe disso, não sabe?

Rafael virou-se para ele, as pupilas dilatadas, refletindo a luz da manhã e um brilho de determinação inesperado.

- Sei. E é por isso que preciso ir. Não posso ficar preso a dúvidas e sombras. Essa carta... essa mulher... Henriette. Ela pode ser a chave que falta para entender quem eu sou.

Miguel ergueu a mão e tocou o ombro do amigo com força, como se quisesse transferir toda a coragem do mundo para ele.

- Vá, então. Mas não se esqueça de onde veio. E de quem aqui sempre acreditou em você.

O apito do navio soou, grave e prolongado, como um chamado definitivo. A multidão começou a se dispersar, e os últimos abraços e despedidas se tornaram ecos no ar frio do amanhecer. Rafael sentiu a garganta apertar, o nó da despedida esmagando sua voz interior.

Ele caminhou até o convés, onde o cheiro de óleo e maresia se misturava ao som constante das ondas quebrando contra o casco. Pessoas de todos os tipos se amontoavam, carregando suas próprias histórias, suas esperanças e seus medos. Crianças corriam em meio às bagagens, mulheres acalmavam os pequenos, e homens mais velhos olhavam para o mar com olhos cansados e sábios.

Rafael encontrou seu lugar na cabine, um espaço pequeno e simples, mas que naquele momento parecia um santuário para seus pensamentos. Ele sentou-se ao lado da janela e olhou para o mar imenso, um território desconhecido e misterioso que o separava de tudo o que já conhecera.

Enquanto o navio começava a se afastar lentamente do cais, a cidade de Buenos Aires começou a desaparecer no horizonte, abandonando as luzes tênues e o som distante do tango que se dissipava no ar.

Fechando os olhos, Rafael se deixou levar por uma série de memórias que o fizeram estremecer: os jantares simples com sua mãe, o sorriso cansado dela ao contar histórias da família, as noites silenciosas em que ele a escutava sussurrar nomes que não entendia - nomes que agora ganhavam vida em sua mente como enigmas a serem desvendados.

Ele se lembrou da última conversa, o tom grave e emotivo da mãe ao entregar-lhe a carta. Ela havia hesitado, como se temesse soltar a verdade que tanto guardara.

- Meu filho - ela dissera -, o passado é um rio profundo. Às vezes, é preciso mergulhar fundo para encontrar a verdade. Mas tome cuidado para não se afogar.

Rafael abriu os olhos, sentindo o calor das lágrimas que ele próprio não sabia se queria derramar. Ele sabia que aquela jornada seria mais do que uma viagem - seria um reencontro consigo mesmo, um desafio às suas raízes e às verdades escondidas.

O navio se afastava cada vez mais, o sol subindo no céu e iluminando a vastidão do mar. Rafael Delgado, com o coração pesado, mas a alma acesa por uma esperança nova, encarava o futuro com a determinação de quem não voltará atrás.

E assim, sob o céu vasto e azul de um novo dia, começava sua travessia - rumo a Paris, rumo ao desconhecido, rumo à verdade.

O navio Santa Isabel começou a deslizar suavemente pelo Rio da Prata, afastando-se lentamente do cais movimentado de Buenos Aires. Rafael permaneceu junto à amurada, observando as silhuetas dos prédios

antigos, as chaminés fumegantes das fábricas e as pontes que cruzavam o rio como guardiãs silenciosas de uma cidade que ele amava e abandonava.

O vento marítimo arrastava consigo um murmúrio distante de vozes, risos e passos, lembrando-lhe que ali, naquele convés, histórias como a dele começavam e terminavam a cada instante. A sensação era de estar preso entre dois mundos - o conhecido e o desconhecido, o passado e o futuro, a segurança e a aventura.

Na pequena praça central do convés, um grupo de passageiros se reunia para ouvir o pianista que, em um canto improvisado, dedilhava as teclas com uma leveza que contrastava com o barulho mecânico das máquinas. A música era uma mistura de valsas europeias e tangos sul-americanos, um eco das culturas que se entrelaçavam naquele navio.

Rafael sentou-se próximo, deixando que as notas fluíssem sobre ele, acariciando suas lembranças. Lembrou-se da infância em Buenos Aires, dos bailes de fim de semana em que seu pai, ausente desde sempre, jamais comparecera. Lembrou-se da mãe, que falava pouco, mas cuja força silenciosa sustentava toda a família.

A cabine, com suas paredes de madeira simples, a pequena cama com lençóis brancos e a janela oval pela qual o mar azul se estendia infinito, era um espaço de refúgio e introspecção. Ali, Rafael abriu novamente a pasta que trazia consigo e leu a carta com atenção renovada.

As palavras de sua mãe, escritas com uma caligrafia firme, revelavam fragmentos de uma vida que ele jamais imaginara: uma linhagem entrelaçada com mistérios europeus, uma mulher chamada Henriette que tinha conexões profundas com seu passado, e uma promessa de que, ao encontrá-la, entenderia tudo.

Ele sabia que sua jornada não era apenas física, mas espiritual - uma busca para preencher os vazios deixados pelo silêncio e pela ausência.

Ao anoitecer, o convés do navio se transformou. As luzes amareladas das lanternas lançavam sombras longas sobre os rostos cansados dos passageiros, que se acomodavam para enfrentar a longa travessia. O ar estava impregnado de conversas em diversas línguas - espanhol, francês, inglês e italiano se misturavam, um retrato vibrante da diversidade que cruzava os mares.

Rafael cruzou olhares com uma senhora elegante vestida com um lenço de seda, que lhe sorriu com gentileza. Um homem robusto, de bigode grosso, puxava uma conversa animada com um jovem casal. Cada um carregava histórias, expectativas e medos que, de alguma forma, ecoavam os seus próprios.

Em seu quarto, ele acendeu um pequeno abajur e sentou-se à mesa, tirando um caderno empoeirado da mochila. Ali, nas páginas amareladas, escrevia desde menino, registrando seus sonhos, dúvidas e esperanças. Naquela noite, as palavras fluíram com mais força que nunca, como se o mar que os cercava fosse também um rio de pensamentos turbulentos que precisavam encontrar saída.

Enquanto rabiscava, Rafael pensava no que o aguardava do outro lado do Atlântico - em Paris, a Cidade Luz, onde as ruas antigas guardavam segredos e promessas. Ele imaginava as avenidas largas, os cafés cheios de escritores e artistas, as luzes brilhando sob o céu estrelado.

Mas também sabia que a viagem seria dura. A solidão, o medo do desconhecido e a incerteza sobre Henriette pesavam em seu coração. O passado da mãe parecia uma sombra que o perseguia, e ele não podia mais fugir dela.

De repente, um ruído chamou sua atenção. Uma batida leve na porta. Miguel, que decidira acompanhá-lo até o navio, apareceu ali com um sorriso cansado.

- Não consegui ir embora ainda - disse ele, entrando com cuidado. - Pensei que talvez você quisesse companhia para essa primeira noite.

Rafael sorriu, sentindo uma mistura de alívio e gratidão.

- Obrigado, Miguel. Isso significa muito.

Eles conversaram por horas, entrelaçando memórias da infância e esperanças para o futuro. Miguel falou sobre a vida simples que abandonavam, os amigos, a família. Rafael ouviu, sentindo o peso da despedida e a força da amizade que o sustentava.

Quando Miguel se despediu, apertando a mão do amigo com firmeza, Rafael ficou sozinho, olhando pela janela para o mar escuro. A viagem apenas começava, mas ele sentia que aquela noite já havia marcado uma transformação profunda.

Ele fechou os olhos e murmurou para si mesmo:

- Henriette, espero que você me espere. Porque eu estou vindo para encontrar a verdade.

E assim, enquanto o navio cortava as ondas, levando Rafael rumo ao desconhecido, o primeiro capítulo de sua história se fechava - para que outros pudessem começar.

Continuar lendo
img Baixe o aplicativo para ver mais comentários.
Baixar App Lera
icon APP STORE
icon GOOGLE PLAY