Ele não fazia ideia de que o câncer, acelerado por sua crueldade, já estava me matando.
Ele queria meu corpo? Ótimo. Recusei todo o tratamento e combinei com o hospital para ligarem para ele. Minha vingança final não era lutar contra ele. Era morrer e fazê-lo reivindicar o cadáver da mulher que ele destruiu.
Capítulo 1
Ponto de Vista: Dália
Bento Ferguson e eu tínhamos uma história de dez anos de destruição mútua, uma tempestade de paixão que nos deixou em ruínas. Éramos o maior amor e a maior fonte de dor um do outro. Tínhamos finalmente declarado uma trégua há três anos, uma paz frágil à qual me agarrei enquanto meu mundo desmoronava silenciosamente. Então, ele voltou para Curitiba.
E a primeira coisa que ele fez foi incendiar meu mundo.
Metaforicamente, a princípio. Uma notificação da prefeitura, fria e oficial, declarando minha loja de discos, "A Batida", um risco ao patrimônio histórico, marcada para demolição. Minha loja. O último presente do meu pai.
A segunda coisa que ele fez foi muito mais literal. Ele mandou seus capangas. Eles não apenas quebraram as vitrines; eles estilhaçaram os expositores, partiram vinis raros ao meio e chutaram a máquina de café expresso até ela dar seu último suspiro.
Encontrei o homem que liderou a equipe de demolição, um brutamontes com um sorriso presunçoso, e quebrei seu nariz com uma chave de roda enferrujada que eu guardava atrás do balcão.
Ele cuspiu sangue no chão. "Ele disse que você faria algo assim."
Bento chegou minutos depois, saindo de um Porsche reluzente, impecável em um terno que custava mais que todo o meu estoque. Ele jogou um cheque aos meus pés. "Pelos danos", disse ele, sua voz um rosnado baixo e entediado. "E pelo seu incômodo."
Eu não o peguei.
"Não é o suficiente, não é?", ele ponderou, um sorriso cruel brincando em seus lábios. "Você sempre quer mais, Dália."
Eu queria dizer a ele que o que eu queria era paz. Um fim tranquilo. Mas o fogo dentro de mim, aquele que ele sempre adorou atiçar, não me deixaria ser uma vítima passiva. Nem mesmo agora.
Não quando os médicos já tinham me dito que não havia mais tempo.
As luzes fluorescentes do corredor do hospital piscavam, lançando um brilho amarelado e doentio sobre tudo. Apoiei-me na parede fria, o copo de plástico com água tremendo na minha mão. Duas enfermeiras passaram, suas vozes em sussurros baixos.
"A do 302. Dália Jarvis. Coitadinha."
"Tão jovem. Do tipo agressivo, sabe. Os exames estão... tomados. É um milagre que ainda consiga andar."
As vozes delas se afastaram, mas uma última frase ficou no ar, nítida e clara. "Nenhum familiar listado. Quem vai reclamar o corpo?"
Quem vai reclamar meu corpo?
A pergunta ecoou no silêncio estéril. Era um problema prático, a última e sombria peça de burocracia em uma vida prestes a ser carimbada como 'encerrada'. Olhei para o meu celular, meu polegar pairando sobre um número que eu não discava há três anos. Um número que eu sabia de cor.
Eu disquei.
Ele atendeu no segundo toque, sua voz impaciente. "O quê?"
Um sorriso desolado e irônico tocou meus lábios. "Bento", eu disse, minha própria voz soando distante e oca. "Eu tenho um pedido."
"Estou ouvindo."
"Quando eu morrer", eu disse, as palavras com gosto de cinzas, "preciso que você reclame meu corpo."
A chuva caía em lençóis implacáveis, borrando as luzes da cidade do lado de fora do novo espaço temporário que eu alugara para A Batida. Era menor, mais limpo e não tinha nenhuma da alma do lugar antigo. Limpei o balcão, o cheiro de tinta fresca e café barato um substituto pobre para madeira gasta e poeira de vinil.
A pequena TV no canto estava ligada, o volume baixo. Um âncora de notícias local se derramava em elogios ao titã da indústria que retornava a Curitiba.
"Bento Ferguson, o magnata do private equity, está de volta à sua cidade natal com tudo, anunciando um projeto de renovação urbana multibilionário..."
A tela o mostrava em uma coletiva de imprensa, parecendo em todos os aspectos o rei implacável que ele era.
O sino na porta tocou, e uma jovem entrou, sacudindo um guarda-chuva de grife. Ela era impecável, seu trench coat imaculado, seu cabelo loiro estilizado em ondas perfeitas. Parecia que tinha saído de um feed do Instagram.
"Oh, uau", disse ela, seus olhos brilhantes percorrendo as fileiras de discos. "Este lugar é incrível. Estou procurando um pouco de jazz clássico. Coltrane, talvez um pouco de Miles Davis."
Antes que eu pudesse responder, o sino tocou novamente. Carlos Valdez entrou, amigo de longa data e sócio de Bento. Ele parecia mais velho, mais cansado. Seus olhos encontraram os meus por uma fração de segundo, um lampejo de antiga familiaridade e nova tensão passando entre nós.
A jovem não percebeu. "Ah, Carlos, você está aqui! Bento disse que costumava amar esse tipo de música. Ele me disse para escolher algo especial para hoje à noite." Ela se virou para mim, seu sorriso brilhante e predatório. "Vamos fazer uma pequena comemoração."
Ela gesticulou ao redor do café vazio. "Eu gostaria de reservar o lugar todo. Apenas por algumas horas. Bento está vindo, e ele adora uma boa surpresa."
Uma onda de náusea me atingiu, aguda e cortante. Agarrei a borda do balcão, meus nós dos dedos brancos. O câncer dentro de mim, uma besta silenciosa e roedora, pareceu se agitar. Estava piorando. Eu podia sentir, uma dor constante e surda que nenhum analgésico conseguia apagar completamente. Os médicos haviam confirmado. Os tumores estavam se espalhando, desafiadores e agressivos. A quimioterapia era uma batalha de desgaste que eu estava perdendo.
A jovem, cujo nome eu agora sabia ser Graziela Lourenço por sua tagarelice, estava dando ordens a Carlos. "Você pode me ajudar a mover esta mesa? Quero montar uma pequena estação de audição bem aqui. Bento vai adorar."
Carlos hesitou, seu olhar se voltando para mim novamente. Ele conhecia a história. Ele tinha visto as discussões aos gritos, os pratos quebrados, as consequências de nossos furacões pessoais.
Na TV, Bento ainda estava falando. A câmera deu um zoom em seu rosto. Eu vi a linha tênue e prateada de uma cicatriz logo acima de sua sobrancelha.
Eu me lembrava de tê-la colocado ali. Um copo de uísque arremessado durante uma briga sobre algo que eu nem conseguia mais lembrar. Foi uma de nossas últimas batalhas, um fim final e explosivo para uma década de guerra.
Toquei o lado das minhas próprias costelas, onde uma cicatriz fraca e enrugada estava escondida sob meu suéter. Uma lembrança dele, um empurrão contra o canto afiado de uma mesa que exigiu seis pontos. Éramos especialistas em deixar nossas marcas um no outro.
Um repórter na TV perguntou: "Sr. Ferguson, há rumores de que você está de volta a Curitiba não apenas por negócios. Há uma razão pessoal? Você está reacendendo uma antiga chama?"
Bento sorriu, um flash de dentes brancos. "A única chama que me interessa é uma nova." Ele fez uma pausa para efeito dramático. "Estou noivo."
Graziela, ainda mexendo na mesa, soltou um gritinho de alegria. Ela olhou para Carlos, seus olhos brilhando. "Você ouviu isso? Ele é tão fofo." Ela voltou seu olhar para mim, uma pitada de curiosidade em seus olhos. "Você conhecia o Bento há muito tempo? Ele nunca fala muito sobre seu passado."
Meus olhos encontraram os de Carlos por cima da cabeça dela. Sua expressão era uma mistura de desculpas e exaustão.
Nesse momento, o sino da porta tocou uma terceira vez. Graziela ofegou e correu para a porta, seu rosto se iluminando como uma árvore de Natal. "Bento!"
Ele estava parado ali, segurando um grande guarda-chuva preto sobre ela enquanto ela se esticava para beijá-lo. Ele a beijou de volta, mas eu vi - uma hesitação fracionária, um leve virar de cabeça antes que seus lábios se encontrassem.
Nossos olhos se cruzaram através do vidro manchado de chuva. Por um único e carregado momento, a cidade, a chuva e a noiva loira e borbulhante desapareceram. Éramos apenas ele e eu, presos no âmbar de nossa história compartilhada.
Graziela tentou puxá-lo para dentro, mas ele a manteve no lugar, a mão nas costas dela. Ele aprofundou o beijo, seus olhos ainda fixos nos meus, um ato flagrante de desafio, uma marcação territorial. *Viu? Ela é minha. Você não é nada.*
Eu quebrei o contato primeiro, virando-me, minhas mãos metodicamente limpando um balcão que já estava limpo.
Carlos se aproximou de mim, sua voz um murmúrio baixo. "Dália... apenas... não faça nada. Por favor. Não por ele. Por você."
"Não fazer o quê, Carlos?", perguntei, minha voz vazia.
"Ele não é o mesmo. E ela é... diferente", disse ele, lutando pela palavra certa. "Ela é sofisticada. Ambiciosa. Ela consegue o que quer."
"Sofisticada", repeti, a palavra com um gosto estranho. Lembrei-me de um tipo diferente de garota, uma com cabelos emaranhados e dedos manchados de tinta, gritando com ele em uma tempestade. Essa garota era eu. E ela já se fora há muito tempo.
O sino tocou novamente quando Bento e Graziela finalmente entraram, trazendo uma rajada de ar frio e úmido com eles.
"Ora, ora", a voz de Bento cortou o zumbido silencioso do café, pingando condescendência. "Sobre o que estamos todos sussurrando? Minha noiva, espero."
Seu olhar pousou em mim, afiado e possessivo, e eu senti a atração familiar e tóxica de sua gravidade. A tempestade não estava mais no horizonte. Estava aqui.
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