A traição mais profunda veio quando ele me acusou de mentir. Anos atrás, eu doei um rim para salvar a vida dele em segredo. Agora, ele acreditava que Helena tinha sido a doadora.
Eles não roubaram apenas minha liberdade, mas também meu maior sacrifício, meu ato mais puro de amor.
A dor era tão avassaladora que se transformou em um vazio gelado. O amor que eu sentia por eles morreu para sempre naquela mansão.
Foi então que, no meu celular antigo, encontrei um e-mail esquecido. Uma oferta da Agência Brasileira de Inteligência. Uma nova identidade. Uma missão secreta em outro país. Uma fuga.
Em dez dias, Clarinda Magalhães morreria. E eu, finalmente, renasceria das cinzas.
Capítulo 1
Sete anos. Foi o tempo que a minha família e o meu noivo pediram. Sete anos da minha vida em troca da reputação deles e da liberdade da minha irmã adotiva, Helena.
"Helena tem a saúde frágil, ela não sobreviveria à prisão. Por favor, Clarinda, faça isso por nós," meu pai, Adauto Magalhães, um advogado renomado, implorou.
"São só sete anos, meu amor. Quando você sair, eu me caso com você. Eu prometo," disse Cristiano Ramalho, o magnata do mercado financeiro que eu amava.
Eu não concordei, mas eles me traíram. Eles me entregaram à polícia.
Agora, sete anos depois, o portão da penitenciária se abriu. O sol de São Paulo queimou meus olhos, desacostumados à luz. Eu mancava, um lembrete permanente de uma briga na prisão. Cicatrizes cobriam meus braços, escondidas sob a roupa barata que me deram.
Um carro preto e luxuoso parou na minha frente. Cristiano saiu. Ele estava impecável como sempre, em um terno caro, o cabelo perfeitamente penteado. Ele não tinha mudado nada.
Eu, por outro lado, era um fantasma.
Ele me olhou, seu rosto se contorcendo em uma mistura de pena e desconforto. Ele não conseguiu esconder a repulsa ao ver meu estado.
"Clarinda... você saiu."
Sua voz era um sussurro. Ele tentou me abraçar, mas parou no meio do caminho, como se tivesse medo de tocar na minha pele danificada.
"Vamos para casa," ele disse, abrindo a porta do carro para mim. "Vamos recomeçar."
Recomeçar. A palavra soou vazia, uma promessa oca. Sentei no banco de couro macio, o cheiro de riqueza enchendo minhas narinas. Era um mundo que eu não conhecia mais.
Ele dirigiu em silêncio por um tempo. O silêncio era pesado, cheio de coisas não ditas. Eu olhava pela janela, a cidade passando como um borrão. Nada parecia real.
Então, o celular dele tocou. Ele atendeu, e sua expressão mudou de tensa para preocupada.
"O que aconteceu? Calma, Helena, respira fundo. Eu estou a caminho."
Helena. Sempre Helena.
Ele desligou e olhou para mim, o rosto cheio de desculpas. "Clarinda, eu sinto muito. É a Helena. Ela teve uma crise de ansiedade quando soube que você estava voltando. Preciso ir até ela."
Eu não disse nada. Apenas o encarei. A velha ferida em meu peito se abriu um pouco mais.
"O motorista vai te levar para casa. Eu vou assim que ela se acalmar, prometo."
Ele parou o carro, me abandonando no meio do caminho para socorrer a mulher que destruiu minha vida. Ele chamou um de seus motoristas, que chegou em minutos e me levou até a mansão dos Magalhães. A casa onde eu cresci.
Ao chegar, fui recebida pela governanta, uma mulher que me conhecia desde criança. Ela me olhou de cima a baixo com desprezo.
"A senhora Cláudia disse para você ir para o quarto de serviço nos fundos. Suas coisas antigas não estão mais no seu quarto."
Cláudia, minha mãe. A socialite que sempre me tratou com indiferença, preferindo a filha adotiva, Helena, a mim, sua filha biológica.
Obedeci sem uma palavra. O quarto de serviço era pequeno, úmido e cheirava a mofo. Era uma cela, só que com uma janela. Sentei na cama dura, o corpo doendo.
Do lado de fora, ouvi as vozes da minha família no jardim. Eles falavam em francês, achando que eu não entenderia.
"Ela está horrível," disse minha mãe. "Como Cristiano pôde sequer pensar em se casar com isso?"
"Ele não vai," disse minha irmã mais nova, Giulia. "Ele ama a Helena. Ele só sente pena da Clarinda."
Eu fechei os olhos. A dor era tão familiar que quase se tornou reconfortante. Era tudo o que eu conhecia deles.
Abri minha bolsa velha, o único pertence que levei da prisão. Dentro, havia apenas alguns documentos. Peguei meu celular antigo, um modelo simples que a prisão me devolveu. Liguei o aparelho, e uma notificação de e-mail apareceu na tela.
Era um e-mail com o selo oficial do governo. Agência Brasileira de Inteligência. ABIN.
"Prezada Sra. Clarinda Magalhães, sua inscrição de oito anos atrás foi reavaliada e aceita. Apresente-se em dez dias para sua missão. Nova identidade e realocação sigilosa em um país da América do Sul. Ordens de não contatar ninguém por cinco anos."
Meus olhos se arregalaram. Eu tinha me inscrito antes de tudo acontecer, quando era uma estudante brilhante de Relações Internacionais, fluente em vários idiomas. Eu pensei que esse sonho tinha morrido na prisão.
Uma nova identidade. Uma fuga. Uma chance de desaparecer.
Um sorriso lento se formou em meus lábios pela primeira vez em sete anos.
Dez dias. Eu só precisava suportar mais dez dias.
E então, eu estaria livre para sempre.