Eu me lembro do dia em que a encontrei. Mari estava encolhida em um beco, com os olhos cheios de pavor, tremendo. Salvei-a de um sequestro e, a partir daquele momento, a vida dela se tornou a minha. Por nove anos, eu me matei de trabalhar. Vendedor, garçom, entregador. Tudo para que ela pudesse ter a vida que eu nunca tive. Tudo para pagar a faculdade de administração que ela tanto sonhava. Finalmente, aos vinte e quatro, o apartamento que compramos estava pronto. Preparei o jantar, o prato favorito dela, esperando para celebrar nosso novo começo. Ela chegou tarde. Não sorriu. Seus olhos evitaram os meus. "João, preciso conversar com você." A voz dela era fria, distante. "Eu quero terminar." O mundo ao meu redor parou. "Terminar? Como assim? Nós acabamos de nos mudar. Eu preparei o jantar..." Minha voz falhou. "João, seja realista. Nós não somos mais compatíveis." "Diferentes como? Eu fiz tudo isso por nós!" "Não. Você fez isso por mim. E eu sou grata. Foi... conveniente." Conveniente. A palavra me atingiu como um soco no estômago. Nove anos de sacrifício, reduzidos a uma conveniência. "Você ainda é um vendedor. Eu preciso de alguém que possa me acompanhar, que entenda as minhas ambições." Cada palavra era uma pá de terra jogada sobre o caixão do nosso amor. Olhei para as minhas mãos, para os calos, para o rosto dela e vi uma estranha. Uma mulher fria e calculista. "Tudo bem." Foi a única coisa que consegui dizer. Ela se levantou. "Vamos pelo menos jantar uma última vez", eu disse. Ela concordou. "Mas preciso ser rápida. Tenho um compromisso." Comemos em silêncio. A comida, que eu preparei com tanto cuidado, agora parecia cinza e sem gosto. "Como vamos fazer com as coisas? Eu não quero nada. Já aluguei um lugar novo. Um lugar melhor." Ela disse "melhor" com uma ênfase que me fez sentir pequeno. "Eu te dei o meu melhor, Mariana." "Eu sei, João. Mas o seu melhor não é mais o suficiente para mim. A vida é sobre buscar melhores oportunidades, não é?" Ela pegou o porta-retrato da nossa foto, virou-o, tirou a fotografia e a empurrou para mim. "Você pode jogar isso fora." O símbolo da nossa história, descartado como lixo. "Nós dois sabíamos que isso ia acontecer um dia. Pense nisso como uma formatura." O toque dela queimava. Sua tentativa de consolo era um insulto. O calor subiu pelo meu rosto, mas não era de vergonha. Era raiva. Uma raiva gelada e silenciosa. "Tudo bem, Mariana. Você pode ir." Ela pegou algumas roupas, e enquanto remexia nas gavetas, algo caiu com um baque metálico. Um par de abotoaduras de prata. "O que é isso?" Mariana se virou, os olhos arregalados de pânico. A mentira era tão óbvia. "Ah, isso? É... é um presente da empresa." "A empresa te deu abotoaduras masculinas?" "Sim. É unissex. Sei lá. Foi só um brinde corporativo, não significa nada." Mentirosa. Naquele momento, um milhão de pequenas coisas começaram a fazer sentido. As noites em que ela chegava tarde do "trabalho". As chamadas misteriosas. A dor da traição era diferente da dor do abandono. Era mais suja. "Você pode ficar com o carro", ela disse, mudando de assunto. "A empresa me ofereceu um carro." Ela estava tentando me comprar. "Eu não quero o carro, Mariana." Ela se virou lentamente. "Então o que você quer?" "Eu quero saber de quem são as abotoaduras." O silêncio que se seguiu foi a confissão. A máscara de controle rachou. "Você está me acusando de quê?", ela sibilou. "Depois de tudo, você acha que pode me acusar?" "Eu fiz uma pergunta. De quem são as abotoaduras, Mariana?" "Ok. São do Gabriel. Gabriel Souza. Meu colega de trabalho. Ele é um homem de verdade, João. Um homem com futuro, com ambição. Nós estamos juntos há alguns meses." Alguns meses. Enquanto eu fazia horas extras, ela estava com ele. Uma dor aguda atravessou minhas costas. O mesmo lugar que doía quando eu carregava caixas pesadas para pagar a matrícula dela. "Não se preocupe comigo", eu disse, esforçando-me para endireitar. "Aparentemente, você nunca se preocupou." "Isso não é justo! Eu sempre..." "Sempre o quê? Você sequer sabe por que minhas costas doem, Mariana? Você alguma vez perguntou qual dos meus três empregos me deixava mais exausto? Você sabe que eu vendi o relógio que ganhei do orfanato para comprar aquele seu livro caro de finanças?" Ela ficou em silêncio, o rosto em branco. Eu ri, um som que rasgou minha garganta. "O provedor não importava, só a provisão." "Eu preciso ir. O Gabriel está me esperando lá embaixo." "Ah, claro. Não vamos deixar o Gabriel esperando. Ele deve estar ansioso para te levar para a sua 'vida melhor'." Ela pegou a mala e se dirigiu para a porta. "Aliás, Mariana", eu chamei. "Você esqueceu suas vitaminas na prateleira do banheiro." "Minhas vitaminas? Eu não tomo vitaminas." "Exato. As vitaminas que o médico receitou para a minha dor nas costas. As que você deveria ter me lembrado de tomar todas as manhãs. Mas você sempre esquecia, não é?" Ela não respondeu. Apenas abriu a porta e saiu, fechando-a com um clique suave que soou como o fim de um mundo. Minha dor, negligenciada como meu amor, ecoava no apartamento vazio.