atingido alguma artéria importante, eu já teria morrido. Dói. Dói
para um caralho. Dói apenas de olhar para a ferida aberta.
Contraio os lábios. Merda. Preciso fazer alguma coisa.
Olho ao redor em meio ao breu profundo e assustador do
subsolo da Masters. Qual decisão em minha vida me levou até
este exato momento? Que curva tomei que me fez acabar com
um maldito rasgo na coxa no meio de um manto de escuridão
quase absoluto enquanto busco pelo meu irmão?
Consigo pensar em várias respostas diferentes desde que
cheguei nesta escola; todas fariam muito sentido, mas nenhuma
seria correta de verdade. A decisão que me trouxe até este
momento não foi minha, foi do meu pai, quando decidiu internar
os dois filhos neste inferno. Como ele pôde fazer isso comigo? Com a
gente? Por que nos abandonou desse jeito?
No helicóptero em alta velocidade, brinco com minhas unhas, tentando disfarçar o nervosismo que me domina. Aqui, em meio a esse contexto, meu vício em tecnologia está se mostrando mais forte do que pensei: apenas algumas horas se passaram desde que meu celular foi confiscado, o que é uma conduta de praxe, e nenhum aluno tem acesso ao aparelho durante o ano letivo; minhas mãos, no entanto, ainda anseiam pelo pequeno objeto que era minha vida inteira até agora. É como se tivesse perdido um membro.
Meus olhos ardem; as lágrimas de mágoa se misturam às de
dor e borram minha visão prejudicada pela falta de luz ao redor.
Se a maldita tocha apagar, então estarei fodido.
Inspiro fundo, tentando me recompor. Preciso seguir em
frente. Preciso encontrar meu irmão. Se nosso pai não vai nos
ajudar, então Calvin só pode contar comigo.
Seguro a barra da camisa e rasgo um pedaço do tecido. O
som das fibras se rompendo preenche o corredor até então
mortalmente silencioso – à exceção do crepitar sutil da tocha.
Quando consigo uma porção suficiente, enrolo-a ao redor da
coxa e faço um nó.
- Ah! - Não consigo conter o grito quando sinto a pressão
sobre o corte. É como ter aquela adaga enfiada na minha carne de
novo. - Merda, merda, merda... - Respiro algumas vezes até a
sensação excruciante se atenuar. - Vamos lá, seu filho da puta
desgraçado.
Guardo a faca, apanho a tocha do chão, tateio a parede outra
vez e me ergo. Sigo mancando em direção à escuridão.
Não dou dez passos até alcançar o que parece ser uma sala
de tortura.
Estou no caminho certo.
*Quatro semanas antes*
Sem celular por dez meses. Engulo em seco. Como vou sobreviver a isso?
Viro o rosto para o lado, em direção a Calvin. Ele parece
muito mais tranquilo, largado no banco, observando o oceano
que se estende sob nós até o infinito. Seu rosto não possui um
traço de preocupação sequer quanto ao mundo – talvez tenha
esquecido que essa é a razão pela qual estamos indo para o
inferno.
Eles contam histórias sobre este lugar. E, além de um site
com as informações mais básicas possíveis, histórias são tudo o
que somos capazes de conseguir. Meu pai estudou aqui; segundo
ele, foi a experiência mais miserável de sua vida. Hoje ele é
Secretário de Estado, então acho que, no fim das contas, a
miséria valeu a pena.
Alguns dizem que a academia está localizada bem no centro do Triângulo das Bermudas; outros, que é guardada por sereias e pelo próprio Kraken. É como um culto: os alunos entram no começo do ano, saem no final e nunca mais relatam em detalhes o que passaram lá dentro. Meu avô, que também estudou aqui, disse que, hoje em dia, virou um depósito de delinquentes; de filhos bastardos, rebeldes e desajustados de pessoas ricas que querem desesperadamente empurrar seu lixo para fora dos holofotes. Ou para debaixo do tapete, pelo menos por um tempo.
Calvin e eu somos exatamente isso: um lixo podre que precisa ser mantido escondido para o bem da vida política de nosso pai.
Para ser sincero, se está tão puto pelo que fizemos no verão passado, então deveria apenas nos matar e atirar nossos corpos nesse oceano. Nos pouparia de toda essa tortura.
Nego com a cabeça. Para de ser tão mórbido, Andrew. Se estivesse no lugar do seu pai, você faria a mesma coisa.
Pelo isolamento da ilha, poucas pessoas sabem o que acontece dentro dos limites da Academia Masters ao longo do ano. Sei que só aceita garotos, e que seus métodos de ensino são muitíssimo rigorosos, mas isso é tudo. Talvez seja melhor nãosaber muita coisa: assim, tudo o que vier pela frente será uma surpresa.
Começo a roer as unhas. Odeio surpresas.
Sigo mirando o oceano, de um azul-escuro profundo. Parece correr sob o veículo em alta velocidade. Uma falha nas engrenagens do helicóptero, um deslize, e ninguém nunca conseguiria localizar nossos corpos.
Então, ergo os olhos.
No horizonte, algo se projeta, rompendo a paisagem até aquele momento plácida e imutada: um castelo.
Suspiro e me afundo no assento. Engulo em seco conforme nos aproximamos.
O castelo está no topo de uma colina, no centro da ilha. É
maior do que imaginei; mais intrigante também. Parece uma
falha, uma miragem, uma pincelada de tinta preta sobre uma
tela em branco, algo que não deveria existir. Não há nada ao
redor, em todas as direções, além de quilômetros e quilômetros
de água. Não há escapatória, e não há misericórdia.
É a Academia Masters, não há como confundir.
Esse é o meu novo lar.
*O SENHOR DO LIXO*
- Vocês todos estão aqui por um motivo. - A voz do homem no final de seus trinta anos ecoa pelo auditório, fria e convicta.
Desembarcamos uma hora atrás e logo fomos recepcionados por cerca de dez professores. Cada aluno ingressante recebeu uma lista de prioridades para o dia de hoje:
1 – Encontrar seu dormitório (e a pessoa com a qual o dividirá);
2 – Dirigir-se ao auditório principal no segundo andar da Torre Leste, onde sua jornada na Masters será iniciada oficialmente.
Um pouco pretensioso, se quer saber. Não nos deram tempo sequer de almoçar ou de respirar depois da viagem longa. Além do mais, achei que o diretor fosse o responsável por esse tipo de coisa, e não os professores.
No palco, estão as dez pessoas que nos recepcionaram. O diretor, novamente, nem sequer se deu ao trabalho de aparecer.
Engulo em seco. De cara, esse lugar é estranho. Há certa eletricidade no ar, algo que faz cócegas nos meus pulmões, que parece deixar minha visão levemente borrada. Quero dar o fora daqui.
Mordo o lábio inferior e, de relance, fito Calvin à minha direita. Ele parece menos desconcertado do que eu – porém, mais... impaciente. Dou uma rápida olhada nas dezenas de outros garotos ao redor. Alguns parecem agitados; muitos cochicham
baixinho entre si; todos estampam no rosto uma mistura de
desinteresse e irritação.
Expiro fundo e volto a prestar atenção no professor
segurando o microfone. Ele parece anormalmente alto.
- Quando Woodrow Hall estudou a costa leste da América
em busca do melhor local para fundar sua Academia, ele não
escolheu esta ilha por acaso. Alguns dizem que ele a viu num
sonho; outros, que estava fascinado por algo que vagava por
essas florestas. O que importa é que, no dia três de outubro de
1805, o primeiro muro deste castelo foi erguido; a primeira pedra
da primeira torre, que está acima de vocês, foi assentada. E o
resto é história.
Ele tem um tom ríspido e distante na voz; não transmite
muita receptividade. É feio; as linhas do rosto, severas demais,
afiadas demais, como se o homem tivesse segurado uma careta
por tanto tempo que ela resolveu ficar para sempre gravada em
sua face.
- Mais de trezentos anos depois - balbucia ele, andando
sem pressa de um lado para o outro na plataforma -, o destino
nos trouxe até este momento, reuniu a nós todos neste salão.
Somos parte de uma imagem muito maior, e ninguém nela é
mais importante do que nosso diretor. O sr. Davies comanda esta
instituição de prestígio há quase duas décadas, dando
continuidade ao legado de Hall e ao de todos que vieram antes,
trazendo para o interior desses muros garotos que talvez não
estejam tão bem alocados lá fora, que precisem aprender o gosto
da disciplina e o valor do respeito.
- Onde ele tá? - sussurro para Calvin.
- Quem? - rebate meu irmão, me encarando.
- O diretor.
- Dizem que ele nunca aparece em eventos públicos como
este - responde uma voz atrás de mim. Sobressaltado, me volto
na direção da pessoa que falou. - Oi. - O garoto ergue a mão num cumprimento e sorri sem mostrar os dentes.