"A libra de carne que ora exijo
foi comprada muito caro; pertence a mim, e hei de tê-la."
O mercador de Veneza, ato 4, cena 1
O som apressado dos pés deles na calçada correspondia às batidas frenéticas
do coração dela, e o modo como o pai segurava apertado sua mão era quase
doloroso. Suas pernas curtas, de uma menina de 9 anos, tinham dificuldade em
acompanhar os passos dele, fazendo-a tropeçar e quase correr para manter o
ritmo. O maxilar dele estava contraído como ela nunca vira e seus olhos, em
geral tão radiantes e despreocupados, se encontravam tão escuros e raivosos
quanto o céu acima deles. Ela sentiu vontade de chorar.
Um barulho atrás deles a fez se virar. De um beco saíram cinco homens
encapuzados que, apesar de manterem a cabeça abaixada, acompanhavam as
passadas velozes de seu pai, perseguindo-os como animais selvagens.
O pai talvez tenha dito palavras reconfortantes para aliviar o pânico que
arrepiava seu pescoço, mas o medo logo se justificou quando ambos foram
cercados e algo duro atingiu e derrubou seu pai, levando-a junto com ele.
Desorientada, com os joelhos ardendo por terem raspado no concreto da
calçada, ela olhou para cima e gritou quando um bastão de beisebol atingiu as
costas do pai duas vezes, com um som assustador.
Ela não viu de onde veio a mão que bateu com força em seu rosto, fazendo-a
rolar em direção à rua e ficar totalmente atordoada enquanto ouvia o berro
furioso do pai ressoar em seus ouvidos. Ele se pôs de pé, cambaleante, e se atirou
sobre os agressores. Ela observou horrorizada a chuva de socos, pontapés e
pauladas que ele levou em retaliação.
Em meio às agressões que sofria e aos berros para que entregasse a carteira,
o pai gritou que ela corresse. Implorou que se afastasse, mas ela ficou ali,
congelada. Como ele podia pedir que ela fosse embora? Tinha que ajudá-lo,
salvá-lo! Lágrimas escorriam por seu rosto e um choro descontrolado explodiu
de sua garganta.
Ele gemeu em agonia quando outro punho acertou sua cabeça e seus joelhos
se dobraram, atingindo o chão enquanto ela caminhava na direção dele. E, antes
que o alcançasse, seu braço foi inesperadamente puxado na direção oposta. Ela
choramingou aliviada, esperando ver um policial ou algum segurança do pai –
mas era alguém não muito maior que ela, usando um capuz preto e sujo.
Quando ele começou a arrastá-la para longe dali, ela se debateu e gritou para
que a soltasse. Será que ele não percebia que o pai precisava dela, que com
certeza iria morrer sem sua ajuda? Mas o estranho continuou em frente,
puxando-a rua abaixo até a porta de um edifício abandonado, a duas quadras de
onde o som pavoroso de um tiro tomou conta do ar.
Ela gritou pelo pai e, livrando-se da mão de seu salvador com um empurrão
forte, saiu correndo em direção ao local do ataque. Não tinha ido muito longe
quando foi dominada por mãos fortes que a imobilizaram no chão. Ela continuou
berrando, lutando com todas as forças que tinha, mas logo seu corpo ficou
exausto e seus lamentos e gritos se tornaram soluços desolados, murmurados no
chão frio sob sua testa.
O peso em cima dela desapareceu e duas mãos a levantaram, reconduzindoa ao edifício abandonado. Ela se apoiou em quem a salvara e chorou de dor em
seu capuz sujo. Precisava retornar para seu pai. Precisava ver que ele estava
bem. Ele tinha que estar bem. Um braço em torno de seu ombro e uma mão
gelada em sua bochecha a abalaram, e ela murchou ainda mais nos braços de
seu salvador desconhecido.
Ela deve ter permanecido daquele jeito por horas; talvez tenha até pegado no
sono. A próxima coisa de que tinha consciência era de ser carregada por um
homem barbudo em direção a uma ambulância. Ela abriu os olhos inchados pelo
choro e viu policiais e paramédicos rodeados por um mar de luzes vermelhas e
azuis piscantes.
Suas expressões, que a assombrariam pelo resto da vida, lhe diziam
inequivocamente que o pai não a colocaria para dormir naquela noite.
Nem em nenhuma outra.