Dentro da casa, o ar tinha cheiro de flores mortas. Um aroma doce, mas enjoativo, que se misturava ao perfume antigo das cortinas pesadas e ao verniz envelhecido do salão principal. Sobre a mesa de jacarandá, um pacto frio e cruel aguardava apenas tinta, papel... e o sacrifício de Scarllet Bellini. Dezessete anos. Oferenda. Prometida. Vendida. Silenciosamente entregue como moeda de troca na aliança entre duas famílias.
No andar de cima, Antonella, com apenas quatorze anos, se encolhia junto à escrivaninha, escrevendo no diário com pressa. O tinteiro tremia ao toque de sua mão, não pelo frio, mas pela raiva. Ela não é uma noiva. É uma prisioneira de luxo, rabiscou com letras fortes, quase rasgando o papel.
Para Antonella, a irmã mais velha era como um cordeiro conduzido ao abate: linda, obediente e submissa demais para lutar. Scarllet aceitava o destino como se fosse inevitável, como se não tivesse escolha.
Antonella, não.
No fundo, ela sonhava com um amor selvagem, escolhas arrancadas à força se fosse preciso, nem que custasse gritos e lágrimas. Com mãos que a segurassem por desejo, não por obrigação.
A maçaneta girou sem aviso. Elena Bellini entrou no quarto como uma deusa de inverno, o vestido de seda azul-marinho caindo com perfeição sobre seu corpo esguio. O perfume de jasmim se espalhou no ar, frio e elegante, assim como seus olhos. Sua voz saiu doce, mas carregada de medo.
– Figlia mia, desça. Não nos faça esperar num momento tão... importante.
Antonella fechou o diário com força, guardando-o no fundo da gaveta. Respirou fundo, tentando conter a fúria, e seguiu a mãe pelos corredores iluminados apenas por candelabros.
O salão estava repleto de uma tensão quase palpável. Irina Ferreti reinava sentada no centro do sofá, as pernas cruzadas com a graça de quem sabia ser observada. O vestido verde, justo e brilhante, abraçava suas curvas como pele de serpente. Seus olhos, duas lâminas frias, varriam cada detalhe do ambiente.
Ao redor dela, homens discutiam o destino de Scarllet como quem negocia a venda de uma propriedade. Dom Giussepe Ferreti, com o rosto marcado pelo tempo, falava pouco, mas cada palavra soava como sentença final. Pablo Bellini, o pai das meninas, mantinha as mãos inquietas sobre os joelhos, o olhar perdido. Não tinha voz naquilo, apenas presença.
No divã, Scarllet parecia uma boneca frágil. Vestido rosa, ombros tensos, olhar vago como se tentasse se ausentar dali em pensamento. Seus dedos retorciam o tecido do colo, denunciando a ansiedade.
O nome Giovani Ferreti ecoava entre as conversas como um fantasma distante, uma sombra que pairava sobre todos, mesmo sem estar ali.
Antonella desceu os degraus lentamente. Não se disfarçou. Era muito jovem, mas já entendia o suficiente para saber que aquele não era um jantar, mas um ritual de entrega. Vestia um macacão azul, os pés descalços tocando o mármore frio, os cabelos soltos caindo sobre os ombros. Não se arrumara. Não se curvaria.
– Buona sera a tutti. – Sua voz, apesar da juventude, carregava firmeza. Ela não baixou os olhos.
Irina a fitou com um desdém calculado. Dom Giussepe sorriu, mas não era um sorriso de afeto.
– Vieni qui, piccola... a tuo zio.
Antonella caminhou até ele. O beijo na bochecha foi breve, mas suficiente para lhe provocar um arrepio gelado. O olhar do don percorreu seu rosto e desceu, fixando-se sem pudor nos pequenos seios que denunciavam o frio através do tecido. Irina percebeu, e a tensão nos lábios dela se transformou em um quase sorriso. Antonella recuou um passo, o estômago revirando.
– Vou ajudar mia madre – disse, e saiu antes que mais olhos pousassem sobre ela. No fundo, sabia que o tempo de ser apenas espectadora estava prestes a acabar.
Longe dali, em Florença, Giovani Ferreti acendia um cigarro na sacada de um hotel. A fumaça subia lenta no ar gelado, mas ele não pensava em nada além de negócios. Não sabia do acordo. Não lembrava da menina que, um dia, o amara em silêncio. Não imaginava que seu nome já estava gravado no destino de uma mulher...
E que, quando descobrisse, talvez fosse ele a escolhê-la.