Ele foi o único homem que amei, meu professor. Havia uma fotografia da esposa e filho em sua mesa que lembrava-me o quanto meu amor era platônico, mas muitos anos se passaram e agora somos colegas de trabalho. David Bragança tornou-se um homem frio, cheio de culpa e extremamente mundano. Ele também não tem mais esposa. O único problema foi que ao tentar ajuda-lo, acabei caindo no seu mundo e desenterrando segredos.
NELLY
NOVE ANOS ANTES.
Meu estômago está embrulhado, minhas mãos suadas e estou falhando na missão de não chorar em público. Este é o meu primeiro dia no ensino médio e me esforcei para que fosse diferente dos outros anos, mas fui ingênua e estou pagando pelo meu erro. Os olhos ávidos dos meus colegas vagueiam por toda sala até chegarem em mim, eles estão sendo sutis, tomando cuidado em camuflar a maldade e preconceito em seus olhares e expressões, porém, vacilam ao não se preocuparem em disfarçar os risinhos e cochichos.
Posso ouvir cada piadinha.
Mamãe estava certa ao falar que meu cabelo seria apenas mais um atrativo para o bullying, eu deveria tê-la ouvido quando disse que ser gorda já era ruim o suficiente, eu teria que colaborar ou as pessoas teriam motivos para rir de mim. O pintei de rosa na tentativa de parecer diferente, descolada, mas me sinto com uma aberração.
Deslizo mais em meu assento, tentando me esconder dos olhares debochados. Mantenho minha cabeça abaixada, evitando contado direto com qualquer um deles, porque assim é mais seguro. Contenho a vontade de levantar e sair correndo, porém não posso fraquejar logo no início do ano, minha experiência me ensinou que ações assim só pioram a situação.
Então, engulo tudo calada.
Ouvi falar que o ensino médio era horrível por vários motivos, mas imaginei que a convivência com crianças mais velhas seria melhor pela maturidade, doce engano. Eles não ficam rindo e apontando, inventando apelidos infantis, fazem muito pior, te menosprezam apenas com o olhar.
- Olha o cabelo dela. - Uma menina fala, não se preocupando em camuflar seu tom de aversão.
Alguém rir.
- Ela parece a junção de um boto rosa com baleia. - O cometário maldoso desencadeia uma série de risadas altas, fazendo com que eu me encolha ainda mais no assento.
Meus olhos queimam para expulsar as lágrimas que se formam, mas me recuso a chorar.
Eu não vou chorar.
Eu não vou chorar.
- Eu acho que ela comeu o boto. - Um menino comenta, causando uma nova explosão de risada nos demais e travo na cadeira, sentindo minha pele queimar pela humilhação.
Levanto as vistas para observá-lo, ele está apenas duas cadeiras de mim, rindo junto do pequeno grupo de seis pessoas. Ele é alto e moreno, mas não deve ter mais de quinze anos como eu. Seu olhar vira para minha direção no momento que estou fazendo uma análise detalhada de sua aparência, um som de surpresa deixa minha boca quando as íris prateadas me encaram intimidante, para minha surpresa ele não desvia o olhar do meu, fazendo meu coração acelerar caloroso.
- Edu, você me ouviu? - A menina ao seu lado pergunta, chamando sua atenção pra ela.
Então, ele desvia, mas não antes de me dá um sorriso de lado, piscando junto. Pisco várias vezes em seguida, tentando entender o que acabou de acontecer.
- Tem alguém sentado aqui? - Uma voz feminina pergunta, então olho para o lado e vejo que está se direcionando a mim.
A olho intrigada, ela é a primeira que trocou qualquer palavra comigo até agora.
- Não... - Sussurro.
Ela sorrir simpática, parecendo agradecida, então se senta ao meu lado sem cerimônia.
- Qual o seu nome? - Pergunta, demonstrando um real interesse ao me olhar.
Me mantenho em silêncio alguns segundos, tentando decifrar o motivo pelo qual ela está falando comigo. Desço meus olhos por seu corpo magro, esguio como mamãe gostaria que o meu fosse. Os cabelos cor de mel são longos e chegam quase ao meio de sua cintura, o rosto pequeno e oval lhe traz uma imagem de nobreza. Ela é perfeita demais para falar comigo.
- Desculpe, deixa eu me apresentar primeiro, me chamo Alice. - Fala, estendendo sua mão para que eu pegue.
Crispo o cenho, ainda não entendendo sua atitude.
- Nelly... meu nome é Nelly. - Digo, pegando em sua mão.
Ela assente, sorrindo pra mim. Abre a boca para falar algo, mas sua atenção recai na direção da entrada, suas pupilas se dilatam e um burburinho começa.
Olho na mesma direção que ela olha e quase perco o fôlego quando o vejo, todo de terno e gravata, parado bem no meio da porta.
Ele parece um Deus grego de tão bonito, tirado dos meus livros favoritos.
- Bom dia, classe C. - Sua voz sai rouca, aveludada e todo mundo se silencia para observá-lo adentrar a grande sala.
Ele se encaminha sem pressa para a única mesa presente no recinto, deixando claro o que já imaginávamos, ele é o novo professor de história que a diretora informou que chegaria hoje.
Ele põe sua bolsa de lado sobre o metal da mesa sem muita formalidade, mesmo sendo observado por todos os trinta alunos presentes.
- Vamos começar as apresentações. Eu vou chamar pelo nome de vocês seguindo a ordem alfabética, na sua vez, cada um vai se apresentar e dizer o que espera das nossas aulas esse ano.
A turma faz algazarra, soltando gritinhos de protestos.
- Aqui todo mundo já se conhece. - Alguém afirma, mas o homem nos encara irredutível.
Por dentro estou me tremendo toda, odiando sua ideia. Sempre fui ruim com interações, a exposição me deixa nervosa e insegura. Sou um alvo fácil para os mais diversos comentários preconceituosos.
- Serei o primeiro. - O homem fala, seguindo para o centro do lugar.
Aproveito que todos estão distraídos e passo meus olhos sobre meus colegas, traçando seus perfis e não me surpreendo ao encontrar algumas garotas na mesma situação que eu, estupefata pela beleza madura do homem.
- Me chamo David Bragança, serei o melhor professor que vocês já tiveram o prazer de conhecer. - Suas palavras causam euforia, fazendo com uivos e assovios tomem conta do ambiente.
Então, as apresentações se iniciam. Ele vai chamando nome por nome até chegar minha vez, o constrangimento me invade quando sua boca diz meu nome repetidamente pela segunda vez e eu continuo o encarando em silêncio.
Começo a hiper ventilar, sentindo minhas mãos geladas e minha boca secar.
- Senhorita Leitão, é a sua vez. - Sua voz sai seca e direta, mas ainda atenciosa e risos explodem por toda a sala.
Meus olhos voltam a lacrimejar.
O homem encara o bando de adolescentes como se fossem habitantes de outro planeta, franzindo a testa com indignação e raiva.
- Leitão, combina com ela. - Carlota, a mesma garota que comentou sobre meu cabelo mais cedo volta a falar, rindo do seu próprio comentário.
Ameaço levantar da cadeira, sufocando com o choro preso, mas Alice me prende pelo ombro, dando a entender que não me deixará partir. Olho com desespero em sua direção, implorando para que me liberte de seu aperto e encontro suas íris pretas como carvão ressentidas, cheias de raiva.
- Não fuja, isso é tudo que eles querem. - Diz, apontando na direção do pequeno grupo na qual o tal Eduardo parece fazer parte com a cabeça.
Não saio, mas sinto a água salgada inundar minha visão.
- Contei alguma piada? - O sr. Bragança volta a falar, parecendo verdadeiramente irritado, apesar de usar um tom frio para falar.
Aos poucos os burburinhos e risos se dissipam, embora eu mantenha minha cabeça abaixada para evitar contato.
- Nelly? - A voz aveludada pronúncia meu nome, arrastando a primeira sílaba por tempo demais. Pressiono minhas unhas contra minha palma.
Não o respondo, ele insiste mais uma vez e então ergue meu rosto pelo queixo.
- Você pode se apresentar? - Pergunta baixo, olhando-me com atenção.
- Não...- Sussurro.
Ele assente, não insistindo e volta para seu lugar perto da mesa.
- Bem, quero apresentar pra vocês quem provavelmente será uma das minhas melhores alunas, Nelly Álvares Leitão. Seu currículo é impressionante, querida.
Ele pisca pra mim quando pronuncia o final.
Meu peito se enche de emoção, asas de borboletas causando reboliço no meu estômago, ele está me defendendo.
Ele me defendeu!
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