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Allegro

Allegro

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Sinopse

Índice

Rio de Janeiro, 1989. Beatriz é uma jovem que vê sua vida desmoronar com o assassinato de seu irmão. E encontra em Dill, um rapaz alegre e carismático, a força para enfrentar a dor do luto. Porém, esse novo mundo que ele lhe apresenta também revela a violência que antes ela só via nos jornais. Até perceber que é tarde demais. Os bandidos estão a sua volta. Seu mundo também não é tão seguro quanto supunha e as pessoas não são como ela sempre acreditou. E o Dill também não. Até onde uma mentira protege ou uma verdade salva? Acompanhe a transformação que a dor e o amor são capazes de realizar. E como pequenas mentiras e grandes verdades mudam toda uma vida.

Capítulo 1 Allegro

Onde há fumaça…

Finalmente uma notícia! Recebi uma carta de Alexandre. Ele não poderia ter telefonado como qualquer pessoa normal? Mas meu irmão é assim. Sempre fez as coisas do modo mais difícil. Desde pequeno ele já insistia em nadar contra a maré. E seu temperamento difícil só piorou as coisas para ele, principalmente, depois que nossa mãe faleceu. A morte dela foi o ponto de partida para que a relação entre ele e o meu pai ficasse insuportável. Alexandre passou a culpá-lo por todas as mazelas do mundo. E, apesar de ter que concordar com meu irmão em alguns pontos, não posso negar que, dessa vez, ele foi longe demais. Alexandre enfrentou meu pai como que, se com isso, pudesse derrotar todo um sistema. Como se a derrocada dele destruísse também todos aqueles, que na visão de meu irmão, corrompiam o mundo com dinheiro e poder. Alexandre se achava um revolucionário, mas era um sonhador.

Sei que meu pai não foi nenhum santo. Foi um marido distante. E sei também que minha mãe não foi feliz. Ainda me lembro de seu rosto, com seu sorriso apático, e de seus olhos sem brilho. Porém, não me esqueço de também como suas feições mudavam quando Alexandre se aproximava. Ela parecia se encher de vida e ganhar forças para vencer, mas um dia, a terrível doença que a consumia a venceu. Ela estava doente, porém, ninguém sequer ousava pronunciar o nome de tal doença. Era como algo impronunciável, amaldiçoado e abominável. O pouco que se comentava era através de frases inacabadas, olhares cheios de cumplicidade e piedade entre as pessoas que trabalhavam em minha casa. Só agora, depois que fiquei adulta, é que soube realmente o que a matou. Ainda hoje estremeço só em ouvir tal palavra. E talvez por força da criação que tive e das coisas que ouvi quando criança que evito a todo custo dizê-la.

Eu era bem pequena, mas me lembro perfeitamente do dia em ela morreu. Alexandre gritava e chorava sem parar, enquanto alguém tentava tirá-lo do lado da cama dela, de onde, naqueles últimos dias, ele raramente saía. Quando finalmente conseguiram trazê-lo para fora do quarto ele correu, me abraçou e disse:

-Estamos sozinhos agora.

Naquele momento eu não consegui entender, nem mesmo compreendia o que era a morte, porém, também comecei a chorar vendo o desespero dele.

Meu pai? Esse só chegou na hora do enterro. Estava fora do país a negócios e foi recebido por toda ira e revolta de meu irmão. E desde aquele dia passou a acusá-lo da morte dela. Talvez ele tivesse razão. Ou, como meu pai sempre disse, tentando se defender, não havia nada que ele pudesse ter feito. Todos os recursos que a medicina dispunha na época foram usados. Mas o que isso importa agora? Nenhum dos dois, certo ou errado, pode trazê-la de volta.

A morte de minha mãe transformou o que era uma convivência respeitosa, embora superficial, em uma guerra. Alexandre despejava toda a sua frustração e revolta em nosso pai, que, por sua vez, nunca tentou se aproximar dele de verdade. Eram só intermináveis trocas de acusações. Estavam sempre querendo testar os limites um do outro. E nessas batalhas nunca houve um vencedor. Os dois sempre deixavam a arena derrotados. E era eu quem sempre, depois de cada embate, tentava tratar as feridas. Conhecia a posição dos dois e os erros de cada um deles e tentava com isso aplacar os ânimos e consertar as coisas. Entretanto, nunca foi fácil. Era como viver sentada sobre uma mina que, a qualquer movimento mais brusco, explodiria.

Fiz tudo que pude para que Alexandre não deixasse essa casa. Embora cheio de erros, Alexandre era uma pessoa maravilhosa. O irmão mais amoroso que alguém poderia ter. Minha mãe também devia ver nele o que eu conseguia sentir por detrás de tanta rebeldia e por isso o amava tanto, até mais do que a mim mesma. Mas não tenho do que me queixar. Eu também o amo. Recebi dele todo o amor e carinho de que precisei. Minha infância foi repleta de seus mimos. E mesmo com a pouca diferença de idade entre nós, Alexandre tentou ser o pai e a mãe que eu não tinha. Sempre doce, meigo e preocupado. Até quando me repreendia, e ele se achava no direito de fazê-lo, mas era terno. Lembro-me das brigas que ele tinha com nossa professora de piano quando ela me obrigava a solfejar até minhas mãos não poderem mais e eu começava a chorar de cansaço e dor. Nessas horas ele crescia. Parecia um rapazinho e a ameaçava dizendo que pararia definitivamente com aquelas aulas. Sei que a professora sempre se rendia porque sabia que ele seria um grande músico e um grande desperdício deixar que abandonasse os estudos. Seria melhor, então não exigir tanto de mim, que nunca seria uma virtuose, do que perder aquele tão precioso pupilo. Ela deveria saber que todo gênio possuía aquele temperamento arrebatado, que podia ir do mais doce olhar até um acesso de fúria, como se vai da primeira a última nota da escala. Assim como Mozart e tantos outros gênios desajustados.

Ela estava certa. Alexandre tinha sim o dom para música. Tocava com maestria vários instrumentos, mas era com um violino que ele deixava toda sua alma florescer. Ele se iluminava e parecia transfigurar-se. Não havia quem não se emocionasse ao ouvi-lo tocar. Só meu pai parecia não entender que Alexandre nasceu para a música e que ele nunca conseguiria enfiá-lo num terno e trancá-lo num escritório.

Creio que a desavença entre eles fez com que um abominasse o mundo do outro, dando assim motivos para mais brigas. Meu irmão nunca ligou para dinheiro, nem para os negócios da família e meu pai sempre achou que música é coisa para desocupados e delinquentes.

E esse foi um dos motivos que levou Alexandre a sair de casa. Foi o fim de qualquer possibilidade de reconciliação.

Meu irmão não deixou nenhuma pista de seu paradeiro. Simplesmente sumiu. E meu pai passou a agir como se ele estivesse morto. Ou pior, como se ele nunca tivesse existido.

Mas eu não desistiria dele. Faria tudo o que pudesse para trazê-lo de volta. Essa casa também era dele e seu lugar era aqui, perto de mim.

Enquanto ele estava do meu lado eu ainda podia controlar as coisas e tentar tirá-lo da beira do precipício onde ele estava. Mas, e agora? Onde ele estaria? O que estaria fazendo? Onde estaria dormindo? Como estaria conseguindo manter-se? O pouco dinheiro que ele levou certamente já tinha acabado. E essas dúvidas me tiravam o sono. Felizmente aqueles meses de agonia e perguntas sem respostas se acabaram. Logo eu poderia ver com meus próprios olhos como ele estava. Só assim teria um pouco de paz para me concentrar em meu casamento.

Ah! Como eu queria que Alexandre tivesse encontrado alguém especial! Uma namorada que o colocasse na linha. Que o fizesse crescer e o tornasse mais responsável. Quem sabe ele até não começasse a trabalhar, mesmo que não fosse com papai, e formasse uma família?

Apesar de bonito, inteligente e extremamente sensível meu irmão não tinha muita sorte com as mulheres. A maioria das garotas que se aproximava dele só estavam interessadas no sobrenome que ele carrega. É, carrega. Porque para ele nosso nome é um fardo. Outras não suportaram por muito tempo o seu gênio difícil. Ciumento, extremamente inseguro e dependente. Nem todas aquelas palavras bonitas, que só ele era capaz de dizer, foram capazes de sustentar seus relacionamentos por muito tempo. E como diz aquela máxima: “os opostos se atraem”, a mulher pela qual ele realmente se apaixonou, Raquel, era uma dondoca que só se preocupava com roupas, festas e colunas sociais. Tudo o que ele dizia que mais desprezava no mundo. A maior perua arroz de festa que eu conheço. Eu sempre soube que aquele namoro não daria certo. E depois de alguns meses ela deu-lhe um tremendo pé no traseiro.

Nunca vi meu irmão tão arrasado. E posso afirmar que ele piorou muito depois disso. Não parava mais em casa, se afastou dos poucos amigos que tinha e começou a andar com uma turminha barra pesada com a desculpa que tinham montado uma banda. Nem mesmo pegava seu violino para tocar. E quando o empunhava as notas que tirava dele eram tristes e melancólicas. Alexandre fechava os olhos e parecia que o violino chorava junto com ele.

Mas não foi só isso. Não posso tentar me enganar. Meu noivado parece ter sido a gota d'água. Meu irmão nunca concordou com ele. Detestava o meu noivo. Dizia que Fernando não era o homem certo para mim. E que se eu me casasse com ele teria uma vida igual à de minha mãe: solitária e triste. Acredito que ele só dizia isto porque Fernando se parecia, e muito, com papai. Um viciado em trabalho. Ele morava em São Paulo, onde trabalhava numa das maiores corretoras financeiras da América Latina, e realmente tinha pouco tempo para ficar comigo. Mas se esforçava. Vinha me ver sempre que podia. Era o jeito dele, porém, sei que gosta de mim de verdade.

Meu pai, ao contrário de meu irmão, ficou radiante com a notícia do meu casamento. Ele respeitava e até admirava o Fernando. Dizia que ele tinha todas as qualidades de um grande empreendedor. E vivia tentando-o, fazendo-lhe propostas, oferecendo-lhe um lugar no comando de suas empresas. E eu pensava: Quem sabe um dia Fernando não aceita e possamos ter um pouco mais de tempo juntos? Fugir de minha “maldição de família” para usar as palavras de Alexandre.

Ah, meu irmão! Que falta você me faz! Sinto falta até de suas rabugices! E agora todos saberão disso. Resolvi contar minha história. Ela poderia ser diferente. Não sei se melhor ou pior. Quem pode prever as voltas e reviravoltas que a vida dá? Mas, certamente, foi você, meu irmão, quando me escreveu aquela carta, que na verdade mais se parecia com um bilhete, não importa, que mudou minha vida.

"A mais adorável das mulheres, minha irmã Beatriz,

Eu estou muito bem, não se preocupe. Finalmente estou fazendo o que sempre quis. Estou vivendo da minha música. Conheci pessoas legais que acreditaram em mim e me deram uma oportunidade.

Estou louco de saudades de você!

Vem me ver! O endereço segue abaixo.

Beijos desse irmão que te ama,

Alexandre

PS: te espero na sexta-feira, às 21:00 h.

Rua: Cel. Antônio de Almeida, nº 1530, Vila Verde."

O endereço ficava do outro lado da cidade e eu teria que pegar a Avenida Brasil, próximo a Coelho Neto como no mapa que ele havia desenhado abaixo. Mas não me surpreendeu. Isso é bem típico de meu irmão. Alexandre sempre dizia que era em lugares como esse que as pessoas são realmente felizes.

Eu não tinha mais tempo para as minhas lembranças. Já era tarde e eu devia sair logo se quisesse estar lá na hora marcada mesmo sabendo que Alexandre só apareceria com, no mínimo, uma hora de atraso. Cariocas nunca chegam na hora. É certo charme que temos embora os paulistas não pensem assim. Aprendi com Fernando que pontualidade é imprescindível.

Atravessei a cidade com um pouco de medo. Já tinha até me arrependido de não ter pego um táxi. O Rio estava ficando muito perigoso para uma moça dirigindo a noite sozinha. Ainda mais para aquelas bandas que só apareciam em manchetes de jornais quando acontecia uma tragédia. O que, infelizmente, era muito frequente.

Dei inúmeras voltas pelas redondezas sem conseguir achar a tal rua. Passei pela frente da quadra de uma escola de samba de que eu nunca tinha ouvido falar, com certeza do segundo ou terceiro grupo, e pensei: “este é o último lugar onde eu encontraria o Alexandre”. Grande engano! Mais a frente estava a placa presa no muro pintado de verde e branco: “Rua Cel. Antônio de Almeida”. E bem ao lado do portão de entrada da tal quadra, “n°1530”. Aquele era o endereço da Unidos do Vila Verde. Alexandre devia ter enlouquecido!

O movimento em frente à quadra já era bastante grande e eu só encontrei um lugar para estacionar já no fim da rua. Dali em diante ela se estreitava e subia por um morro apinhado de casas simples e muitos, muitos barracos. “Só mesmo meu irmão para me trazer a um lugar destes!”

Puxei o freio de mão e suspirei aliviada: “Até que em fim!” Mas meus problemas mal tinham começado.

Abri a porta e me vi cercada por três homens.

-O que a "dondoquinha" faz perdida por aqui? – disse um negro alto e muito mal encarado me arrancando de dentro do carro.

-Se tá procurando da boa, já encontrou! – completou o menor deles – É só dizer quanto tu vai querer.

O terceiro, um branco alto e de cabelo encaracolado, tentava tirar a bolsa das minhas mãos.

Eu estava apavorada. Por mais incrível que possa parecer, já que nasci e fui criada no Rio de Janeiro, aquela era a primeira vez que eu era assaltada. E em meio ao meu nervosismo tentei me explicar, como se fosse resolver alguma coisa, que aquilo tudo era um grande mal-entendido.

-Não! Eu não quero nada! Mas vocês podem levar o carro… Eu tenho um pouco de dinheiro na bolsa… O relógio…

De repente, um quarto homem apareceu correndo e gritando:

_Sujô! Sujô! Vamos saí daqui!

E os quatro saíram correndo em direção à subida do morro sem levar nada.

“A polícia”, pensei. Porém, para minha surpresa, foram outros três homens que se aproximaram. Um deles me perguntou: -Você está bem? Precisa de alguma coisa?

-Eu estou bem. Foi só um susto – respondi entre um suspiro deixando meu corpo bater pesadamente na lateral do carro.

-Tem certeza? – insistiu – Está branca feito papel. Olha como você está tremendo!

-Talvez um copo d'água – e curvei o corpo para frente apoiando as mãos nos joelhos. “Água?!” Eu não devia raciocinar direito.

Por um instante cheguei a pensar que desmaiaria. Senti minhas pernas bambearem. Mas o homem deve ter percebido e me segurou rapidamente enquanto ordenava aos outros dois:

-Pavão, traz água para moça. Ditinho corre e vê se os caras já foram.

-Mas e você? Vai ficar aqui sozinho? – um deles tentou argumentar.

-Vão logo – e abriu ainda mais a porta do carro com os ombros, ajudando-me a sentar dentro dele.

-Está melhor agora? – e como num passe de mágica ele já tinha um copinho plástico de água mineral nas mãos que me estendeu sorrindo.

Bebi a água num só gole. Minhas mãos tremiam. Só agora eu tinha me dado conta do perigo que corri. Respirei fundo e lhe respondi:

-Estou melhor. Já posso ir embora agora – eu só queria sair daquele lugar o mais rápido possível.

-Calma. Está nervosa demais para sair dirigindo por aí. Espere pelo menos você parar de tremer.

Ele sorriu e eu achei que ele podia estar certo. Não tinha condições nenhuma de enfrentar todo o caminho de volta nervosa daquele jeito.

-Ah! Eu nem sei como agradecer – mesmo naquela situação eu não podia esquecer as boas maneiras.

-Pode começar me dizendo o seu nome – o rapaz me sorriu de novo e estranhamente me senti mais segura.

-Beatriz, e o seu? – sorri sem jeito.

-Edimar, mas meus amigos me chamam de Dill. Você não é daqui, não é?

Dill me observava atentamente enquanto eu ajeitava o vestido sobre as pernas, um tanto constrangida.

-Não. Eu me perdi.

Olhei para aquele rapaz com o rosto enfiado dentro do meu carro e só então eu me dei conta do quanto ele era bonito. Pele dourada de sol, olhos claros, embora eu não conseguisse identificar a cor, nariz bem desenhado, lábios carnudos e barba por fazer. Seus cabelos eram claros e que já tinham, e muito, passado da hora de cortar, mas que lhe dava certo charme. Ele usava uma calça jeans clara e uma camisa branca de algodão com as mangas dobradas até a altura dos cotovelos e desabotoada até o meio do peito. No pescoço, um cordão preto de fio encerado com um pingente que eu não consegui reconhecer. Pareceu-me uma placa de metal com alguma coisa gravada. Um desses cordões fáceis de encontrar em qualquer banca hippie. Não sei o porquê, mas me lembrei de Fernando naquela hora. Eles eram tão diferentes! Fernando era quase dez anos mais velho do que eu. Um homem de porte altivo, olhar determinado, olhos e cabelos escuros impecavelmente cortados. Sempre usando um terno muito bem-talhado. Sua ideia de uma roupa casual era uma camisa polo e bermuda de pregas que, nunca disfarçaram sua seriedade inata. Já o rapaz ali na minha frente tinha olhos de criança e parecia ter sempre um sorriso pronto a lhe escapar dos lábios.

-Não quer entrar e ver o ensaio? – ele me despertou de meus pensamentos.

-Não, obrigada. Eu tenho que voltar para casa!

-Se quiser avisar seus pais de que está bem e vai se demorar um pouco mais, pode ligar lá da quadra – ele insistiu. Mal sabia ele que eu não tinha ninguém para avisar. Ou melhor, ninguém que se importasse com o meu paradeiro.

-Vamos?! Você vai se divertir, relaxar e esquecer esse susto – continuou insistindo – Se não gostar eu prometo que a deixo ir embora. Posso até acompanhar você até sua casa.

Pensei um pouco e achei que não faria mal algum em aceitar seu convite. Afinal, ele acabava de me livrar de um assalto e estava sendo extremamente gentil. E ainda tinha Alexandre que certamente deveria estar lá dentro me esperando. Àquela altura eu já esperava qualquer coisa de meu irmão. Ele tinha me feito vir até ali. Encontrá-lo dentro de uma quadra de escola de samba não me parecia mais tão impossível. E ver meu irmão naquela hora faria tudo ter valido a pena.

Dill, como ele preferia ser chamado, tirou as chaves da ignição e as jogou para o negro enorme, alto, largo, com as veias lhe saltando do braço como uma hera trepadeira, assim como em seu pescoço que se confundia com a cabeça. Seu cabelo era raspado nas laterais deixando apenas um topete quadrado no alto da cabeça.

-Pavão, guarda o carro da moça lá dentro.

Em seguida me puxou pelo braço e bateu a porta. Segurando minha mão me levou para o portão de entrada da quadra. O outro homem, que já algum tempo nos esperava a certa distância, nos seguiu um tanto contrariado. Esse não era tão alto como os outros. Um mulato que me pareceu mais gordinho do que forte e como o mesmo corte de cabelo. Porém, o que ele não tinha em estatura, tinha em atitude. O tempo todo de braços cruzados e com uma expressão de que a qualquer momento pularia no meu pescoço.

Não passamos pelas roletas como todo mundo que entrava. Um senhor, assim que nos viu, apontou para uma porta que ficava ao lado. Atrás desta porta tinha uma estreita escada que subimos e chegamos numa sala grande, cheia de mesas e armários. Dill me apontou um telefone sobre uma delas e me disse para ligar para os meus pais. Sentou-se em uma das cadeiras e ficou ali, imóvel, esperando que eu fizesse a ligação.

Sem saber o que fazer eu peguei o telefone e liguei. A governanta atendeu e eu lhe disse onde estava. Fiquei imaginando a cara de espanto dela. Eu nunca dava satisfações de meus passos para os empregados ou mesmo para meu pai que, por sua vez, não perdia seu tempo perguntando sobre meu paradeiro.

Descemos as escadas novamente, mas saímos por outra porta que dava para o lugar onde eram feitos os tais ensaios. A quadra era pequena e simples, mas em nada deveria perder em animação para as grandes agremiações do grupo especial.

Fiquei espantada com a recepção que tivemos. Logo que saímos pela porta, um homem alto, magro, com um bigodinho horroroso, e parecendo um mostruário de joalheria, correu em nossa direção.

-Dill, meu garoto! – gritou ainda a alguns passos de nós – E aí, rapaziada? Beleza? – completou cumprimentando os outros dois homens que pareciam ter saído do nada e estavam bem atrás de nós.

-Beleza! – responderam os dois quase na mesma hora.

-Tu não foi ao barracão esta semana, Dill. Precisa ver como está ficando o abre-alas. Uma beleza!

-Eu estava ocupado – respondeu meu acompanhante meio sem jeito.

O homem me olhou de cima abaixo e com um sorrisinho irônico respondeu:

-Posso imaginar….

Na mesma hora Dill se apressou em fazer as apresentações.

-Essa é Beatriz. Uma amiga – fez questão de reforçar – Ela veio conhecer tudo por aqui.

-Beatriz… - o homem que vestia uma camisa verde parecendo ser feita de cetim, beijou minha mão cheio de trejeitos e com certa malícia, parecendo um malandro dos áureos tempos da Lapa.

-Mauro Pessoa, seu criado. Está em casa, madame!

E se voltando para o Dill, completou:

-Vão sentar. Mais tarde eu dou uma passadinha na sua mesa.

Sentamos à mesa bem perto do palco que era bem grande, tomando toda a lateral do galpão, mas não muito alto. Ao fundo, a parede exibia uma enorme bandeira verde e branca com o símbolo da escola: uma borboleta dourada. O lugar onde estávamos era privilegiado, de onde se podia ver tanto o que acontecia em cima no palco, como as pessoas sambando no centro da quadra. E, também, por ficar distante do bar, do lado oposto do palco, nos dando certa privacidade. Assim ficávamos livres daquele monte de gente se acotovelando por causa de uma cerveja e gritando sem parar para ser atendido pelos poucos homens que estavam por detrás do balcão de cimento. Logo depois apareceu sobre a mesa uma garrafa de whisky de qualidade um tanto discutível, uma cerveja, copos, uma porção de batatas fritas e uma “francesinha”. Não me lembrava de ter visto garçons servindo as mesas. E quando, por pura curiosidade, resolvi procurar por um com os olhos, dei-me com o tal Mauro Pessoa do outro lado da quadra com a boca repuxada num sorriso indefectível. Ele me acenou com a cabeça, então compreendi: “oferta da casa”.

-Não quer beber nada? Comer alguma coisa? – Dill me perguntou quando eu recusei a cerveja e o whisky, enquanto os outros dois homens, que também se sentaram conosco, devoravam se cerimônia o pratinho de carne picada.

-Prefere um refrigerante? – ele completou.

-Água. Com gás se tiver – e imediatamente me arrependi de ter feito esse comentário. Podiam pensar que eu era uma dessas filhinhas de papai cheia de frescuras. Não era agindo assim que se retribui uma gentileza.

-Mas pode ser natural também – tentei consertar.

Dill já ia se levantar quando o tal de Pavão lhe tomou à frente.

-Deixa que eu vou – e colocando mais um pedaço de carne na boca perguntou:

-Com gás, né moça?

Foi quando ele se levantou da cadeira à minha frente que eu pude ver que estava armado. A camisa de viscose deixada para fora do cós da calça, displicentemente, marcava direitinho os contornos do que parecia ser o punho de um revólver enfiado na sua cintura. Tentei me controlar para que não percebessem o quanto eu havia ficado nervosa com tal descoberta. Talvez fosse melhor que nem suspeitassem que eu tivesse reparado naquela arma. Olhei para outro homem sentado ao meu lado e lá estava o mesmo volume sob a roupa. Voltei os olhos para o Dill sentado a minha direita e o encontrei sorrindo para mim. Esbocei um sorriso e olhei disfarçadamente para a sua cintura também. Não sei se ele percebeu, mas o fato é que ele se ajeitou na cadeira e recolocou o colarinho da camisa no pescoço. Debruçou-se sobre a mesa e eu não consegui ver nada sob sua roupa.

Pensei em simplesmente agradecer o convite, elogiar o ensaio e sair de fininho, mas não consegui. Cada vez que eu tentava dizer alguma coisa, alguém vinha cumprimentá-los. Homens, mulheres, jovens; velhos, parecia uma verdadeira via–sacra à nossa mesa. Para alguns, o Dill me apresentou. Principalmente para àquelas que ele chamava de “tia”. Muitas delas faziam parte da ala das baianas e pareciam orgulhosas em conhecê-lo bem intimamente.

-Eu vi esse garoto crescer! Cheguei a trocar as fraldas dele! – uma delas me disse com a boca quase sem dentes – Quem diria que aquele “ratinho russo” viraria esse rapaz tão bonito! Parecia haver um carinho sincero entre eles o que aos poucos foi me deixando mais tranquila. Para que todos ali gostassem dele tanto assim, o Dill não deveria ser má pessoa. Eu estava em outro mundo. Talvez naquele lugar fosse natural se andar armado. Talvez, exatamente por estarem armados que puderam enfrentar os bandidos e me livrar daquele assalto. Acho que ninguém ali dentro deixou de cumprimentá-lo nem que fosse apenas com um mero aceno de cabeça.

-Você está em casa! Pode ir dar uma volta por aí ser quiser. Eu estarei por aqui – Dill disse ao meu ouvido por causa do barulho da bateria.

-Não, eu estou bem aqui, obrigada.

Na realidade eu não estava nada bem. Sentia-me um E.T. naquele lugar. Mas se eu ficasse ali quieta teria mais chances de ver Alexandre quando ele chegasse.

Todos pareciam estar se divertindo. Cantavam e tamborilavam os dedos sobre a mesa de ferro pintada com logotipo de cerveja. Apenas eu não conseguia relaxar e tentar me divertir. Ainda não conseguia compreender o que poderia ter trago meu irmão a um lugar como aquele.

A porta-bandeira desceu do palco e veio andando em nossa direção. Era bem alta e vestia um vestido verde de alças finas e saia bem rodada. Nos pés, um sapato preto de saltos bem grossos. Quando ela parou em frente à mesa e fez um maneio com a cabeça o Dill se levantou e beijou a bandeira verde e branca da escola. Então a negra lustrosa e de cabelos presos num coque no alto da cabeça lhe estendeu a mão o convidando para segui-la. Ele fez um sinal com as mãos recusando o convite com um sorriso tímido nos lábios. Mas logo foi cercado por várias passistas de shorts bem cavados e mini-blusas de paetês. Algumas delas tinham até um enfeite de penas coloridas na cabeça. E praticamente o arrastaram para o centro da quadra. No meio do caminho ele parou e se virou também me estendendo as mãos. Eu sorri sem graça dispensando o convite, mas ele voltou e me pegou pela mão. Diante da insistência eu não tive outro jeito senão me deixar levar.

É engraçado como, quando se permite, aquela música mexe com a gente. O surdo faz nosso corpo tremer e aqueles tamborins nos deixam arrepiada.

Dill sorria satisfeito ao perceber que eu estava me divertindo embora eu não tivesse o menor jeito para sambar. Aliás, ele também não era nenhum passista. Contentamo-nos em balançar o corpo e algumas vezes ele segurava a minha mão e me fazia girar enquanto me olhava com certa incredulidade estampada no rosto. Chegou a ser desconcertante no começo, mas depois de algum tempo pareceu-me até divertido. Não eram todos os dias que alguém me olhava como se eu fosse uma diva. Sei lá. A verdade é que fez muito bem para o meu ego.

A bateria fez um intervalo e nós dois voltamos para a mesa. Assim que me sentei ofegante e suada, o tal Pavão se levantou dizendo:

-Já sei. Água com gás! Pode deixar.

Dill bateu a mão no ombro dele agradecendo o favor.

-E aí? Está se divertindo? – me perguntou logo depois de dar uma boa golada no seu copo de whisky.

-Muito! Nunca pensei que isso pudesse ser tão legal – respondi sinceramente.

-Ótimo. Então está convidada a voltar quando quiser.

-Virei um dia desses – dessa vez respondi sem tanto entusiasmo. Apesar de estar mesmo me divertindo eu não pretendia voltar.

Pavão voltou com minha garrafinha de água e mais uma daquelas porções de carne picada cheia de cebola em rodelas e chamou o tal Ditinho para dar uma volta. Eu achei ótimo. Aquele homem me olhava de um jeito que me dava arrepios. Sempre de cara fechada e me olhando pelos cantos dos olhos.

Sozinhos, Dill aproveitou para aproximar sua cadeira da minha e confessou um tanto sem graça.

-Não tem ideia de como eu estou feliz em ver que você está se divertindo. Até um tempo atrás achei que tinha feito uma grande bobagem te trazendo para o ensaio. Já estava vendo a hora em que iria ser levantar da cadeira e ir embora. E eu nunca mais veria você de novo.

Um risinho escapuliu-me e eu abaixei o rosto tentando controlá-lo. E depois de me certificar de que eu não mais riria de uma cantada tão barata voltei a encará-lo como se nem tivesse me importado com as palavras dele.-Vou ficar só mais um pouquinho. Ainda tenho esperanças de que Alexandre apareça. Ele marcou aqui comigo.

-Alexandre?! Seu namorado?

Confesso que fiquei tentada a mentir e dizer que era meu namorado quem eu esperava só para ver como ele reagiria.

-Não, meu irmão.

-Isso! Fica mais um pouco – disse com um sorriso maroto – Quem sabe ele ainda não aparece?

Nessa hora uma moça se aproximou vindo por detrás dele de mansinho e lhe tapou os olhos com as mãos enquanto me fuzilava com o olhar. Pensei que podia ser uma namorada ciumenta e discretamente saí da mesa enquanto ele tentava adivinhar quem ela era arriscando nomes sem sucesso.

A certa distância, no meio daquela gente toda se acotovelando e se espremendo para chegar até o balcão do bar, acenando com suas fichas coloridas nas mãos, eu pude vê-lo me procurar com os olhos. Ele virava a cabeça para os lados enquanto a moça, exibindo um par de coxas que me fizeram desejar que ela tivesse bastante celulite por debaixo daquele minúsculo pedaço de pano que ela chamava de saia, segurava o braço dele e insistia em continuar falando. O Dill, por sua vez, parecia fingir que prestava atenção ao que ela dizia, sorrindo de vez em quando.

Achei que era hora de ir embora. A última coisa que eu queria era arrumar qualquer tipo de confusão naquele lugar. E aquela moça parecia determinada a conseguir a atenção dele. O problema era que eu nem mesmo sabia onde eles tinham enfiado meu carro. E quando a moça finalmente desistiu e foi embora, visivelmente aborrecida, eu dei a volta e voltei para a mesa.

-Onde estava? Você sumiu! – perguntou num misto de indignação e alívio.

-Procurando o toalete. Mas estava tão cheio que eu desisti de esperar – disse a primeira bobagem que me veio à mente.

-Por que não me disse? Tem um banheiro lá em cima. É limpinho e está vazio agora.

-Pode deixar! Acho melhor eu ir para casa. Estou cansada e pelo jeito o Alexandre não vem mais.

Era duro, mas eu tinha que admitir que meu irmão tinha me dado um bolo. Sua cota de atraso já tinha expirado.

Nem mesmo o mais relapso dos cariocas se atrasaria tanto. O melhor era ir para casa e esperar que ele, pelo menos, telefonasse se desculpando. E eu já estava até com saudades das desculpas esfarrapadas dele.

-Tudo bem – Dill não tentou me fazer mudar de ideia ou insistiu para que eu ficasse mais um pouco – Vou pedir para o Pavão buscar o seu carro. A gente sai e espera lá na calçada.

Ele se levantou e fez sinal para os dois homens que estavam debruçados no balcão do bar. Já se podia ouvir o som de alguns instrumentos dando mostras que o ensaio recomeçaria e o bar estava bem mais vazio.

Pouco depois de chegarmos à calçada meu carro apareceu. Atrás dele parou um desses Gols todo incrementado, vermelho, com pneus de aro 14, aerofólio, bancos esportivos e com o som nas alturas parecendo querer disputar com a bateria que começava a tocar lá dentro. Pavão desceu do meu carro e jogou as chaves para o Dill. E quando achei que ele iria me devolvê-las, ele simplesmente deu a volta, se sentou no banco do motorista e abriu a porta do carona por dentro para que eu entrasse.

-Posso te levar em casa? – ele sorriu e continuou – Sabe, costumo fazer serviço completo. Primeiro eu salvo as donzelas em perigo, então eu as divirto para só depois as entregar em casa, sãs e salvas.

-Não é preciso – achei que ele estava indo longe demais. Mas o que eu podia fazer? Ele continuava sentado calmamente com minhas chaves na mão. Olhei para o carro parado logo atrás com o motor ligado, rugindo a cada acelerada como se quisesse me apressar. Olhei para os lados. Mas para quê? Eu não conhecia ninguém que passava pela rua. Confesso que tive medo, mas não tive outra coisa a fazer senão entrar no carro.

-Zona Sul, certo? – perguntou ao enfiar a chave na ignição com ares de vitória.

Eu só balancei a cabeça afirmando e comecei a rezar, mas Dill logo interrompeu minhas silenciosas orações.

-Parece preocupada! Olha, garanto que amanhã seu irmão vai lhe dar uma boa explicação para não ter aparecido.

-Espero que você tenha razão! – respondi sem muita esperança.

Se ele soubesse que o bolo do Alexandre era o que menos me preocupava naquela hora! Bem, mas se ele estivesse com más intenções não estaria tão preocupado com meus sentimentos como parecia estar. Procurei relaxar e não pensar no pior. Mas olhei para ele e não resisti.

-Posso te fazer uma pergunta?

-Até duas. Manda aí – respondeu despreocupado.

-O que faz quando não está salvando donzelas em perigo?

-Trabalho – disse naturalmente.

-Mas em quê? - insisti.

-Tenho um pequeno negócio de importação – e continuou a olhar para o sinal vermelho esperando que ele se abrisse.

“Muambeiro”, pensei. Deve ser daqueles que vão ao Paraguai comprar toda espécie de contrabando para revender. Sacoleiro é isso! É assim que eles se chamam. Toda essa história de importação foi apenas uma maneira charmosa que ele encontrou para dizer a verdade. Continuei para ver até onde ele iria com aquela história.

-Não deve ser um negócio tão pequeno assim. Precisa até de seguranças!

-Hoje em dia até super-herói precisa de escolta! – e soltou uma gostosa gargalhada, mas logo em seguida recobrou a seriedade:

-Eles não são meus seguranças. São meus amigos.

-E seus amigos sempre andam armados? - arrisquei.

-Às vezes – e olhando para mim continuou rindo – Já viu o Lyon dos Thundercats sair da Toca dos Gatos sem a Espada Justiceira? – e me deu uma olhada enquanto trocava a marcha.

Achei aquela comparação muito sem propósito. Thundercats?!

-E você? Também carrega sua espada? – era melhor não contrariar e usar seus próprios exemplos.

-Não – sacudiu a cabeça rindo – Estou mais para o Snarf. Só sei dizer: Lyon, socorro! Snarf! – gritou imitando a voz do personagem e acabando sua imitação com outra gargalha.

Não pude deixar de rir também. Dill tinha senso de humor e eu tinha que admitir que imitava o Snarf com perfeição.

E antes que eu recomeçasse meu interrogatório, ele perguntou:

-Preciso parar ali na frente. Você se importa? - ele parecia animado, quase eufórico.

-Claro que não! – O que eu podia dizer? Voltei a rezar.

Os carros pararam e o Dill desceu chamando Pavão para que o seguisse com um gesto e subiram no prédio à frente. O tal Ditinho também saiu do carro, mas ficou encostado nele e acendeu um cigarro. Uns dez minutos depois eles desceram. Dill tentou disfarçar sorrindo quando se sentou novamente no banco do motorista do meu carro, mas ele não estava mais tão alegre como quando subiu. Eu fiquei assustada. Dizem que mulheres têm um sexto sentido e o meu estava gritando que havia algo de errado com ele. Decidi então, tentar driblá-los e levá-los para o mais longe possível da minha casa.

Ele ligou o rádio e passou a cantarolar. Eu, por minha vez, achei ótimo. Assim não teria que manter qualquer conversa tola. Só pensava em sair daquele fim de mundo o mais rápido possível e me livrar daquele Gol vermelho que vez ou outra nos ultrapassava e eu podia ver o rosto de poucos amigos do Ditinho ao volante.

Atravessamos o túnel e chegamos à Lagoa. Pedi então, que seguíssemos para Ipanema. Minha amiga Aline mora lá e eu achei que seria melhor ficar na casa dela. Desceria em qualquer lugar assim eles nunca saberiam onde ela ou, eu mesma, morava.

Quando passamos pela praia pedi para que ele parasse o carro. O apartamento dela não ficava longe dali.

-Aqui está ótimo! Já estou em casa.

-Vai me dizer que mora aqui na praia?! Que é uma sereia ou, quem sabe, a própria Iemanjá? – ele não me levou a sério e continuou:

_Que espécie de Salvador de Donzelas Indefesas pensa que eu sou? – perguntou com um sorriso – só vou ficar despreocupado quando tiver a certeza de que está em casa sã e salva.

Ele não desistiria e eu não sabia o que dizer para que fosse embora sem parecer uma mal-agradecida. Afinal, ele podia não ter nenhuma intenção escusa por detrás daquele incansável sorriso.

Olhei para ele vencida e o Dill então sugeriu:

-Quer andar um pouco? Conversar?

Balancei a cabeça afirmativamente. Talvez ele logo desistisse e fosse embora.

Tirei as sandálias, cruzei a alça da bolsa no corpo e o segui. Suas duas sombras se debruçaram sobre o teto do Gol vermelho e cada um deles acendeu um cigarro sem tirar os olhos de nós dois.

Foi o Dill quem puxou assunto.

-E você? O que faz quando não está sendo assaltada?

-Nada. Nada que valha o registro – respondi sem ânimo para começar qualquer conversa. Eu só queria que ele me deixasse ir embora.

-Não se pode viver sem fazer nada! – sorriu esperando uma resposta menos evasiva.

-Ainda não encontrei minha vocação – abaixei a cabeça um pouco envergonhada.

Ele parou bem na minha frente e eu continuei de cabeça baixa com vergonha de não ter o que dizer. Tinha me dado conta naquele momento que minha vida era vazia. Que eu não fazia nada de importante. Nem para mim, nem para os outros. E que talvez um muambeiro tivesse muito mais importância do que eu. Foi quando ele levantou meu rosto com a ponta dos dedos, erguendo meu queixo. E eu vi seus lábios se abrirem num sorriso cheio de ternura que me trouxe certo conforto. Uma espécie de amparo como se ele soubesse exatamente o que eu estava sentindo. “Como ele conseguia isso?”

-Talvez sua missão seja enfeitar o mundo. Mas sei que é capaz de muito mais do que isso!

-Você é gentil, mas conheço minhas limitações – e me desviei das mãos dele. Mas Dill continuou:

-Quando se apaixonar será capaz de fazer qualquer coisa! Percebi que ele tinha ficado mais encabulado do que eu com suas palavras. Dill abaixou a cabeça e ficou em silêncio por alguns instantes. Quando ergueu o rosto já tinha um novo sorriso e um brilho diferente nos olhos. "É. Realmente ele é muito bonito." Não tive como evitar tal pensamento. Mas não era só pelo rosto ou pelo corpo bem-feito que se conseguia ver pela abertura da camisa. Havia algo de diferente nele. Só não sabia bem o que era. Uma luz… Talvez eu esteja exagerando. Toda aquela áurea a sua volta devia ser efeito da lua cheia refletida na camisa branca contrastando com a pele dourada pelo sol.

Mudamos de assunto enquanto caminhávamos pela praia que estava quase deserta. Já tinha passado da meia-noite e poucas pessoas se arriscavam a passear ou correr pela praia mesmo com todo aquele calor típico de dezembro. Pedi que ele falasse sobre a sua família, mas antes não tivesse dito nada. Sem nenhum constrangimento ou pesar ele me contou que era órfão. A mãe tinha morrido quando ele ainda era muito pequeno e que o pai, que era garçom, foi atropelado por um motorista bêbado quando saía do trabalho. Quanto ao irmão, se limitou a dizer que estava morto também. Não tinha mais ninguém.

E eu que achava que tinha problemas! Sentia-me pequena e sozinha com o sumiço de Alexandre porque sabia que meu pai não ligava para nós dois. Mas nós estávamos vivos e, em breve, juntos, outra vez. Aquele rapaz, ao contrário, tinha todos os motivos para se revoltar contra o mundo. A morte e a violência tinham invadido a vida dele e destruído sua família, mas não sua vida. Ele estava sorrindo e me pareceu que aquela alegria era uma constante na vida dele. E conseguia, só de olhar para a gente, de um modo que eu não sei explicar, nos fazer sentir especial.

Dill também tinha planos. Ele estava na faculdade cursando Administração e também trabalhava com as crianças do bairro onde nasceu.

Algum tempo mais de conversa ele tinha se tornado o meu mais novo amigo de infância. Rimos muito com as histórias engraçadas e um tanto pouco prováveis que ele contava. Misturava realidade e fantasia com muitos cavaleiros de armaduras e donzelas indefesas. Muitas vezes eu ria de mim mesma porque nunca sabia quando o ele dizia algo real ou fruto de sua imaginação. Entretanto, eu estava me sentindo à vontade ao lado dele e também lhe contei sobre Alexandre, meu pai e Fernando. Disse que ia me casar.

-É uma pena! Você não parece feliz com isso! – disse olhando para mim. E eu me senti desconfortável com sua afirmação.

-O que é isso?! – tentei convencê-lo de que estava errado – Fernando é um homem inteligente e determinado. Meu pai acredita que ele tem uma brilhante carreira pela frente.

-E é só isso que um homem precisa ter para se casar com você?! Uma brilhante carreira pela frente?

Eu nada respondi. Não esperava que ele fosse tão direto e quase cruel. E sem se importar com o meu silêncio, continuou:

-Você nem ao menos disse que o ama ou que são amigos. Que se dão bem… Que riem juntos…

-Você parece meu irmão falando – pensei em voz alta interrompendo-o.

-Beatriz, talvez você devesse dar mais ouvidos ao seu irmão. Ele deve se importar com você e saber o que está dizendo. Aposto que ele apoiaria esse casamento se soubesse que realmente ama esse cara.

Ficamos em silêncio por um bom tempo. Estava pensando no que acabava de ouvir e nas coisas que Alexandre sempre me dizia enquanto continuávamos caminhando pela beira do mar e eu brincava com a água que molhava os meus pés.

Foi quando o Dill segurou minha mão e me fez segui-lo em direção ao calçadão. Pensei que nosso passeio tinha acabado. Entretanto, ele se sentou logo à frente, longe do alcance da maré, e esperou que eu fizesse o mesmo. E assim que eu me sentei do seu lado, ele disse:

-Não olhe agora, mas logo vai aparecer um homem e gritar: Corta!

Eu olhei para ele sem entender nada. Foi quando o Dill continuou:

-Nada do que você viveu essa noite foi real. Isso é um filme e esta é a última cena.

Não sei como ele podia dizer tanta bobagem e continuar com aquela expressão de que tinha dito a coisa mais séria do mundo.

-E como acaba esse filme? – eu disse sem segurar o riso. Ele era mesmo muito espirituoso e engraçado.

-Não sei. Não li o roteiro.

Ele também não segurou o riso e jogou o corpo para trás deitando na areia.

-Sabe… Talvez eles terminem com uma tomada dessas estrelas – e enquadrou o céu com as mãos os dedos em L como fazem os diretores de cinema e continuou:

-Mas, na minha opinião, vai ficar muito sem graça – E me colocou no centro de seu enquadramento, completando – se eu fosse o diretor transformaria esse filme em um seriado e deixava os expectadores com gostinho de quero mais.

Abracei meus joelhos trazendo-os junto ao corpo, apoiei meu queixo sobre os braços e fiquei olhando ele divagar.

-Será que vou fazer parte do elenco fixo? Ou fiz só uma participação especial? – ele disse como se perguntasse a si mesmo.

-O filme é seu! – respondi brincando – Sou eu quem fez uma rápida aparição nele.

-Se você quiser, posso conversar com o diretor e colocá-la no elenco – só então ele abaixou as mãos, mas sem tirar os olhos de mim.

-Talvez em algum outro episódio eu apareça – e sorri.

-E o de hoje? Como vai terminar? Os espectadores esperam um final emocionante.

-Já tive emoções demais por esta noite.

Voltei a olhar o mar batendo tranquilo e cadenciado a nossa frente. Eu sabia onde ele queria chegar. É o que todos sempre querem. Nisso ele não devia ser diferente dos outros.

-É hora dos créditos começarem a subir na tela – levantei-me e comecei a bater as mãos no corpo para tirar a areia grudada no vestido.

Quando vi, ele já estava de pé na minha frente. Segurou forte pela minha cintura e me beijou.

Se eu tinha qualquer intenção de resistir ela desapareceu assim que a boca dele encontrou a minha. Foi um beijo rápido, mas bastante intenso. Quando ele me soltou, como se tivesse se arrependido, eu fiquei ainda mais envergonhada do que ele. “Como eu pude ser tão fácil?”

-Não está brava comigo, está? – ele parecia aflito e angustiado como se tivesse acabado de cometer um crime.

-Não. – e lhe dei as costas. Eu também estava sem coragem de encará-lo.

-Seu filme já tem um final, Dill! As luzes se apagaram e a plateia já se foi – eu precisava sair logo dali antes que ele percebesse o quanto eu também estava desorientada.

Quando eu já estava quase chegando à calçada, ele gritou:

-Posso te ligar?

Eu só ergui as mãos num aceno e corri para o carro. Sobre meus ombros, vi os dois homens me olhando, encostados no gol vermelho estacionado ao lado.

Dei a partida e sai.

“Que noite!” Disse para mim mesma tentando coordenar meus pensamentos. Eu não sabia mais o que pensar. O Dill era diferente. Alegre, espirituoso, gentil e extremamente sedutor, mas havia algo de errado com ele. Eu podia sentir. Aqueles homens armados e até mesmo a maneira com que as pessoas o bajulavam. Tudo bem que ele era uma simpatia, mas como diz o Seu Dário, o motorista de meu pai: “Quando a esmola é muita o santo desconfia”. E “desconfiada” era o termo certo para o modo como voltei para casa.

De repente me lembrei de que eu não tinha lhe dado meu telefone. Mas era melhor assim. Fosse ele quem fosse, era passado e eu não precisava mais me preocupar com isso.

Eu estava exausta. Cansada demais para sequer tomar um banho ou tirar aquela roupa. E se há algum tempo atrás alguém me dissesse que eu um dia dormiria naquele estado certamente diria: “você está louco!” Mas assim que cheguei ao meu quarto me joguei sobre as almofadas da cama e apaguei.

Acordei com o telefone.

-Alô! – atendi sem sequer abrir os olhos.

-Beatriz? Onde esteve? Liguei para você ontem a noite toda!

Era o Fernando.

-Saí com umas amigas – disse isso para não ter que ouvir um enorme sermão se ele soubesse que eu tinha ido me encontrar com Alexandre.

-Tudo bem. Olha… Eu disse que só poderia estar aí amanhã, mas cancelei alguns compromissos e vou pegar a ponte aérea agora. Podemos almoçar juntos. O que acha?

-Ótimo – respondi sem entusiasmo. Eu queria continuar a dormir.

-Pode me apanhar no aeroporto? De lá podemos ir aquele restaurantezinho na Lagoa que você adora.

-Tudo bem. Eu vou me arrumar.

Olhei para aquelas almofadas convidativas a me chamar para mais algumas boas horas de sono. Eu não tinha dormido quase nada. O dia já estava amanhecendo quando entrei em casa. Mas o que eu poderia fazer? Fernando tinha cancelado seus compromissos e aquilo era raro acontecer. Além do mais, dentro de uma hora ele chegaria ao aeroporto e fazê-lo esperar estragaria o resto do meu dia como sermões que eu já conhecia de cor. Não. Era melhor tomar um bom banho para espantar o sono e arrumar uma cara bem bonita para recebê-lo.

-Beatriz, quer que eu lhe traga seu café agora? Ou prefere esperar pelo almoço? – Celeste, a governanta, me perguntou antes mesmo que eu acabasse de descer as escadas.

-Um suco de laranja está ótimo. Vou almoçar com o Fernando hoje.

Sentei-me no sofá e peguei os jornais sobre a mesa que ficava bem no centro da sala. E comecei a passar os olhos nele enquanto o suco não vinha. Eu não tinha o hábito de ler jornais, mas quando o fazia, tinha a mania de só ver as fotos e ler seus rodapés. Se a notícia me interessasse, aí sim, eu lia toda a matéria. Abri aleatoriamente o jornal e nem reparei que caderno era aquele. A página só tinha uma pequena foto no canto esquerdo. E o que eu li abaixo da fotografia em preto-e-branco foi o seguinte:

“Moradores do Vila Verde não sabem de quem é o corpo encontrado essa manhã nas proximidades da Quadra.”

Um arrepio percorreu meu corpo. “Alexandre”. Não sei por que foi o primeiro pensamento que me ocorreu. Voltei a olhar a fotografia agora com mais atenção, mas não dava para ver nada que pudesse por um fim as minhas suspeitas. Era só um monte de folhas de jornal cobrindo o que certamente devia ser o corpo rodeado de pessoas que eu não conhecia. Voltei os olhos para a pequena manchete no alto da página: “Corpo de homem é encontrado com seis tiros no Vila Verde”. E comecei a ler a matéria que vinha abaixo.

“Homem branco, aparentando entre vinte e vinte cinco anos, cabelos castanhos, vestindo uma bermuda preta e camiseta branca, foi encontrado morto essa manhã por moradores do Vila Verde na Rua Jaime da Fonseca, em frente ao n° 653, próximo à quadra da Unidos do Vila Verde. Não foi encontrado com a vítima nenhum documento que pudesse identificá-lo. O delegado que investiga o caso, Dr. José Antônio Soares, trabalha com a hipótese de latrocínio, assalto seguido de morte, porém não descarta um possível envolvimento com o tráfico, já que a vítima foi baleada principalmente no rosto, prática muito comum entre os traficantes daquela região. O corpo seguiu para o IML onde será feito exames de autópsia e aguardará por reconhecimento.”

Voltei a olhar a foto e nada. Minhas mãos tremiam e suavam. Não podia ser. Alexandre só tinha me dado o bolo como fizera tantas outras vezes. Ele logo ligaria e com uma boa desculpa. Era assim que eu tentava pensar, mas meu coração dizia outra coisa. Uma coisa horrível demais para ser verdade.

Pensei em Fernando. Só ele poderia me ajudar naquela hora.

Celeste entrou na sala trazendo o suco de laranja. Virei o copo de uma só vez. Eu sempre sentia um apetite incontrolável quando ficava nervosa. Peguei minha bolsa, o jornal, as chaves do carro e saí. Fui para o aeroporto esperar por Fernando.

Assim que o vi aparecer no portão de desembarque corri para abraçá-lo.

-Isso tudo é saudade?! – ele retribuiu o abraço com um pouco de espanto. Eu não costumava ser tão efusiva assim e nem Fernando aprovava essas manifestações de carinho exagerado em público.

-Quero que vá comigo ao IML – disse lhe puxando pelo braço.

-IML?! Você ficou louca? – e se soltou de minha mão parando bem no meio do saguão.

Mostrei a ele o jornal e pedi que lesse a matéria até o fim. Fernando, desconfiado, colocou sua valise no chão e pegou o jornal de minhas mãos enquanto me olhava e repuxava o canto da boca como sempre fazia quando achava que eu estava cometendo um erro. Depois de algum tempo estudando a situação, finalmente se dignou a olhar para o jornal. Quando acabou de ler, me perguntou:

-E daí? Dezenas de favelados morrem todos os dias. O que temos a ver com isso?

-Mas esse aqui pode ser o Alexandre! – e apontei para a foto.

-Alexandre?! Como pode pensar uma coisa destas? Não li nada aí que me fizesse suspeitar possa ser ele… E essa foto? Nem saberia que há alguém debaixo dessa pilha jornal se não estivesse escrito. O que há com você, Beatriz? Anda estressada, nervosa e agora deu para…

-Você vai ficar aí me criticando? Será que não pode me ouvir só uma vez? - eu estava aos berros e as pessoas a nossa volta começaram a nos olhar.

-Tudo bem. Conversaremos no carro – Fernando continuou a falar naquele seu tom de voz baixo, porém firme, tentando evitar um escândalo. Ele detestava cenas como aquelas.

Pegou a valise e caminhou em direção à saída como se eu não estivesse ali.

-Pronto. Agora você já pode falar. Mas sem histeria, por favor – disse assim que entrou no carro e fechou a porta.

Eu já tinha me arrependido de ter lhe pedido ajuda. Mas com quem mais eu podia contar? Respirei fundo e comecei:

-Eu recebi uma carta do Alexandre marcando um encontro comigo ontem, na quadra dessa escola aí que está no jornal. Eu fui. Esperei por ele a noite toda, mas ele não apareceu. Não acha que é muita coincidência?

-Coincidência?! Eu acho isso tudo uma grande loucura! Encontros no subúrbio… Escola de samba?! Só mesmo o maluco do teu irmão para inventar uma coisa destas. E depois de meses sem dar notícias?! – seu sorriso e o modo desdenhoso com que o Fernando falava só serviram para me deixar mais irritada. Mas eu precisava dele. Tentei me controlar.

-Esquece o que você pensa sobre meu irmão. Não pedi que o julgasse. Isso nem interessa agora. Só quero que me responda: e então? Não acha que pode ser ele?

Eu tentei manter a serenidade, pois só assim Fernando me daria um pouco de crédito. Continuei olhando firmemente para ele esperando uma resposta.

-É. Ele se encaixa na descrição do jornal. Mas há centenas de rapazes que se encaixariam também. É uma descrição superficial. Se eu fosse você não me preocuparia com isso – Fernando tentou me despreocupar.

-Me acompanha ao IML? Eu preciso saber.

-Seu pai sabe alguma coisa sobre isso? – Fernando sempre precisando da bênção de meu pai para fazer algo!

-Não.

-Não acha que ele precisa saber antes que você saia por aí metendo os pés pelas mãos?

-Você vem comigo, ou não? Não posso esperar que meu pai encontre um tempinho na agenda dele para me receber. Também não aguento ficar com essa dúvida. É meu irmão! – gritei a essa altura já aos prantos.

-Tem que ser agora?

Eu sabia que ele acabaria cedendo. Certamente eu consegui plantar a sementinha da dúvida na cabeça dele. E de maneira alguma ele me deixaria ir até lá sozinha. Sabia que eu não desistiria.

-Tem certeza de que quer fazer isso? – me perguntou já na porta do IML apertando ainda mais minha mão entre as dele.

-Tenho.

Aquele lugar não parecia tão horrível quanto eu imaginava. Era só respirar fundo e seguir em frente. Logo, todo aquele mal-entendido iria se desfazer. No futuro, nós dois, ou melhor, nós três, ainda íamos rir muito daquele dia. Mas confesso que por mais que eu tentasse pensar assim eu tremia e suava frio. Tentei não chorar para que ele permitisse que eu continuasse a caminhar corredor adentro.

Antes de entrarmos na sala, o legista chamou o Fernando no canto e cochichou alguma coisa, o que só serviu para aumentar minha tensão.

-O legista queria que eu entrasse sozinho, mas eu não sou da família. Não acha melhor esperarmos pelo seu pai?

-Eu já cheguei até aqui. Quero acabar logo com essa dúvida. Por favor, Fernando. Eu preciso saber!

Diante da minha insistência, ele fez um sinal afirmativo para o homem de jaleco que voltou para o interior da sala.

Minutos depois ele abriu novamente a porta e no deixou entrar.

O corpo sobre a mesa estava coberto por um plástico preto. Mas eu nem sequer suspeitei de que eram sacos de lixo improvisando um lençol. Cuidadosamente o homem removeu um pequeno pedaço do plástico deixando o ombro e braço esquerdo do corpo a mostra.

-Reconhece essa cicatriz, senhora?

Como não me lembrar daquele belo tombo de bicicleta quando Alexandre tentou descer os três degraus que davam acesso ao jardim com sua Monark BMX que tinha acabado de ganhar no seu aniversário de onze anos? A força que ele fazia para não chorar quando tiraram a estaca de bambu que cercava a touceira de Hemerocales e o desespero de Celeste correndo com ele para o hospital e do jardineiro que fatalmente perdeu seu emprego naquele dia.

Meu instinto na hora foi tirar o plástico do rosto dele. Eu precisava vê-lo. Ter certeza de que era ele. Quantos garotos não faziam estripulias em uma bicicleta e tinham os corpos cheios de marcas da infância? Mas o Fernando segurou a minha mão, trazendo-me para junto dele e segurando minha cabeça contra o seu peito.

Não sei como deixei aquele lugar, nem para onde fui depois disso. Por mais que eu tente me lembrar das imagens, são sempre soltas, desconexas e sem sentido. Palavras que eu ouvi de alguém em algum lugar. Nada que prove que eu realmente vivi aquilo. Passei os dois dias seguintes como um zumbi sendo levada de um lado para o outro sem nenhuma vontade própria. Também não posso afirmar que participei do velório, assim como do enterro de meu irmão. Não sei. Não me lembro. Mas que diferença isso pode fazer agora? Alexandre está morto, se foi. Acabou.

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1 Capítulo 1 Allegro
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