Cada toque gentil, cada lição paciente, cada "eu te amo" sussurrado - tudo uma mentira calculada. Ele me chamou de descartável, um tapa-buraco até que pudesse ter sua deusa.
Ele me humilhou, me abandonou em uma tempestade e me deixou para morrer após um acidente de carro. Quando salvei Arlete de se afogar, ele me acusou de tentar matá-la e me trancou em uma capela para "refletir".
Mas quando a superlua de sangue azul surgiu, vi minha chance. Não de vingança, mas de fuga.
Eu me joguei no poço antigo da fazenda de sua família, não para morrer, mas para voltar para casa.
Porque eu não era apenas uma garota ingênua com amnésia. Eu era uma princesa de um reino perdido, e o poço era meu portal de volta.
Capítulo 1
Meu mundo inteiro se estilhaçou em um milhão de pedaços no momento em que ouvi a voz clínica do terapeuta de Heitor: "10.000 encontros, Heitor. Você escolheu bem. Ela é pura, ingênua e maleável. Uma receita perfeita."
O mundo que eu conheci por três anos, aquele que Heitor construiu para mim com seus sorrisos encantadores e toques gentis, desmoronou ao meu redor. Eu havia acordado nesta cidade agitada e esmagadora de São Paulo há três anos, minha mente uma lousa em branco. A última coisa que eu lembrava era a fumaça sufocante de um celeiro em chamas, depois nada. De repente, eu estava aqui, em uma cama de hospital, cercada por telas piscando e ruídos desconhecidos. O pânico arranhou minha garganta.
Então ele apareceu, um farol de calma na minha tempestade. Heitor Bastos, bonito, carismático, um bilionário da tecnologia. Ele me encontrou, perdida e confusa, uma estranha sem nome, sem passado e sem memória. Ele me disse que me encontrou perto de um canteiro de obras, desorientada e murmurando. Ele me levou para sua mansão gigantesca e hipermoderna no Morumbi, um lugar tão estranho que poderia ser outro planeta.
"Está tudo bem, passarinho", ele disse, sua voz uma melodia baixa e suave que acalmou instantaneamente meus nervos à flor da pele. "Você está segura agora."
Ele era meu salvador, minha âncora em um mundo que girava rápido demais. Ele pacientemente me ensinou a usar um smartphone, um aparelho mágico que continha informações infinitas e conexões com um mundo que eu não conseguia compreender. Ele me apresentou às redes sociais, um lugar onde as pessoas compartilhavam fragmentos de suas vidas para estranhos consumirem. Tudo era uma maravilha e um quebra-cabeça. Eu devia parecer completamente ridícula para ele, constantemente perguntando "por quê" e "como".
Lembro-me de tentar deslizar uma foto física de uma mesa, pensando que era uma tela com defeito. Heitor riu, um som profundo e vibrante que aqueceu meu peito. Ele não zombou de mim; ele se divertia com minhas "esquisitices", como ele as chamava. Ele explicava tudo com um sorriso paciente, seus olhos brilhando com o que eu pensava ser afeto. Ele até me comprava roupas que envolviam meu corpo com muita força, dizendo que eram "moda", e quando eu tropeçava desajeitadamente em saltos desconhecidos, ele me segurava, seus braços um porto seguro.
Nossa intimidade floresceu lentamente, naturalmente, ou assim eu acreditava. Ele me abraçava forte à noite, sussurrando palavras doces em meu cabelo. "Você é minha, Dora", ele murmurava, seus lábios roçando minha pele, causando arrepios na minha espinha. "Minha inocente e linda Dora." Essas palavras, essa sensação de ser completamente possuída por ele, haviam sido meu mundo inteiro. Eu vivia por seu toque, seu olhar, sua aprovação. Eu o amava com uma intensidade feroz e desesperada que apenas uma pessoa sem passado e sem futuro poderia conjurar. Ele foi meu tudo por três longos anos.
Então os fragmentos começaram. Não memórias claras, mas flashes. Um celeiro alto e robusto. O cheiro de feno e terra fresca. Um poço fundo e claro, sua água brilhando sob a lua. E então, a superlua de sangue azul, aparecendo no céu de São Paulo apenas algumas noites atrás. Olhando para ela, uma estranha sensação de saudade, uma atração por algo antigo e esquecido, agitou-se dentro de mim. Lembrei-me de sussurros de uma comunidade, reclusa e escondida, que abria seus portões apenas durante este raro evento astronômico. Era uma chance, um fio, uma possibilidade de encontrar meu verdadeiro passado.
A ideia de deixar Heitor, mesmo que por um momento, revirou meu estômago. Mas a atração era inegável. Eu sonhava em mostrar a ele essa parte do meu passado, de eventualmente retornar com ele para onde quer que eu realmente pertencesse. Imaginei ele, meu brilhante Heitor, fascinado pelo meu velho mundo, me ajudando a unir os dois.
Naquela noite, decidi contar a ele sobre os fragmentos, sobre a lua, sobre a comunidade. Ele costumava passar as noites em um clube privado, um lugar que eu raramente visitava, sentindo-me deslocada entre a elite brilhante. Mas hoje, eu precisava vê-lo, compartilhar essa esperança crescente. Peguei um Uber para o clube, meu coração pulsando com uma mistura de excitação e apreensão.
Encontrei seu escritório particular no segundo andar, a porta ligeiramente entreaberta. Ouvi vozes. A de Heitor, profunda e ressonante, e outra, mais aguda, mais profissional. Parei, minha mão na maçaneta, prestes a empurrá-la. Então ouvi o nome dela.
"Arlete", a voz de Heitor, mais suave do que eu já tinha ouvido, quase reverente. "Ela é minha obsessão, Cadu. Minha deusa."
Minha respiração falhou. Arlete Sampaio. A melhor amiga da mãe de Heitor. Uma mulher sofisticada e elegante, dez anos mais velha que ele, sempre gentil comigo, sempre sorrindo. Minha mente girou.
Então Cadu, amigo de Heitor, falou, sua voz com uma risada de quem sabe das coisas. "Então, a 'cura' dos 10.000 encontros está funcionando? A Dora está fazendo o trabalho dela?"
Meu sangue gelou. Cura? Trabalho?
"Ela é... eficaz." O tom de Heitor era desdenhoso, quase entediado. "Pura, descomplicada. Não faz perguntas. Exatamente o que a Dra. Albuquerque prescreveu para me manter puro para a Arlete."
O mundo inclinou. Minha visão embaçou, as cores vibrantes do corredor desbotando para um cinza doentio. A voz de Cadu, agora mais clara, ecoou meus piores medos. "Você sempre disse que precisava de alguém... descartável. Alguém que não mancharia sua reputação se as coisas ficassem complicadas. Uma garota simples e ingênua com amnésia, quem melhor?"
Descartável. Ingênua. Uma garota simples. Foi como mil punhais perfurando meu coração, cada um girando mais fundo. Cada toque gentil, cada sussurro carinhoso, cada lição paciente, cada risada compartilhada - tudo mentira. Uma performance calculada. Eu era uma receita, uma ferramenta para ser usada e descartada.
A ficha caiu com a força de um tsunami. Eu não era amada; eu era uma conveniência. Uma sessão de terapia em forma humana. As doces memórias, a paixão intensa, a sensação de ser querida - tudo artificial, fabricado para seu propósito doentio. Minha mente repetiu suas palavras: "Minha inocente e linda Dora." Mas ele não quis dizer isso como um elogio; ele quis dizer que eu era facilmente controlada, facilmente manipulada, uma tela em branco para seu jogo doentio.
Um grito silencioso rasgou meu peito, mas nenhum som escapou dos meus lábios. Eu não conseguia respirar. Minhas pernas pareciam gelatina. Eu me virei, tropeçando cegamente para longe do horror, meu coração uma ferida aberta e sangrando. Eu tinha que ir embora. Tinha que fugir da mentira sufocante que era minha vida, do monstro lindo que fingiu me amar.
De volta à mansão, os quartos opulentos pareciam sufocantes. Fui direto para o banheiro grande e luxuoso. Encarei meu reflexo no espelho, meus olhos arregalados e vazios. Tirei o vestido de seda que Heitor me comprou, empurrando-o para longe como se estivesse contaminado. Liguei o chuveiro, deixando a água escaldante bater na minha pele, tentando lavar cada vestígio dele, cada memória de seu toque, cada palavra falsa que ele sussurrou. Mas a sujeira não estava na minha pele; estava gravada na minha alma.
A superlua de sangue azul pairava grande e luminosa do lado de fora da janela. Era minha única saída. Eu não contaria a Heitor. Ele não merecia saber. Ele não merecia nenhuma parte da minha vida real, não depois de ter orquestrado tão cruelmente esta vida falsa.
Eu o deixaria, assim como ele sempre pretendeu me deixar. Mas eu sairia nos meus próprios termos. E eu nunca, jamais, olharia para trás.