O amor tudo suporta, tudo crê, mas o amor não é só dor. Aprendemos que devemos amar o próximo, mas como vamos amar alguém se nem sabemos o que é nos amar?
Às vezes pensamos demais nos outros, ajudamos demais os outros e esquecemos o principal: nós mesmos.
E eu estava precisando desse tempo. Pra mim. Pra me cuidar. Pra... largar essa dependência emocional dele.
Sim, é difícil de assumir, mas essa relação se tornou uma dependência emocional fortíssima.
Por tudo.
Por ter sido abandonada pelos meus pais biológicos.
Por ter perdido meus pais adotivos.
Por ter perdido o meu...
(enfim...)
Por causa de tantas perdas, minha vida se tornou um caos, regada a dependências, ao medo de ficar sozinha, ao medo de não ter ninguém.
Mas eu esqueci que tinha a mim.
Que tenho amigos verdadeiros.
E que, no meio do caos, há quem me ame exatamente como eu sou: imperfeita, tentando juntar meus caquinhos.
E nesse vasto mundo, há uma Amélia que precisa se encontrar e se amar novamente.
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A chuva caía lá fora, fina e constante, enquanto eu encarava a xícara de café frio sobre a mesa da cozinha da Clara. A casa estava em silêncio, exceto pelo som ritmado das gotas no telhado. Eu me sentia pequena ali - não pela casa, mas pela sensação de vazio que me abraçava desde que fechei a porta e fui embora.
Meu celular vibrou pela quarta vez naquela manhã. O nome dele piscava na tela.
"Caio".
Eu respirei fundo.
Não atendi.
A dor ainda estava muito viva pra que eu conseguisse ouvir aquela voz de novo.
- Ele ainda tá ligando? - a voz de Rebeca soou suave, atrás de mim. Ela entrou devagar, com aquele olhar calmo que sempre parecia entender mais do que eu dizia.
Assenti, sem coragem de olhar pra ela.
- Tá. - foi tudo o que consegui dizer.
Ela se aproximou, colocou as mãos no encosto da cadeira e se inclinou um pouco, me observando com carinho. - E você? Como tá, de verdade?
Minha garganta fechou.
De repente, todo o controle que eu vinha tentando manter desabou.
As lágrimas que eu vinha segurando desde a noite anterior escaparam silenciosas.
Rebeca puxou a cadeira e sentou ao meu lado, sem dizer nada. Apenas estendeu o braço e me abraçou. Um abraço longo, que parecia segurar tudo que eu não conseguia mais carregar.
- Eu... - minha voz falhou - eu achei que fosse mais forte, sabe? Que eu conseguiria só... seguir.
- Você é forte, Amélia. - ela respondeu baixo, sem soltar o abraço. - Só que até as pessoas fortes choram.
Balancei a cabeça, enxugando as lágrimas com o dorso da mão.
- Eu não queria que tivesse acabado. Mas também não queria continuar daquele jeito. Ele me fazia sentir... pequena.
- Eu sei. - Rebeca respirou fundo. - Às vezes, a gente se acostuma tanto com o pouco que esquece o quanto merece o muito.
As palavras dela me atravessaram.
Fiquei em silêncio por um tempo, olhando pro nada, tentando processar o vazio e o alívio que brigavam dentro de mim.
- Foram cinco anos, Bec. - falei, com a voz trêmula. - Eu planejei tudo com ele. A casa, a família... até o nome dos filhos, acredita? - sorri sem humor. - E agora... não sobrou nada.
- Sobrou você. - ela disse com firmeza. - E isso é mais do que o suficiente.
Aquela frase me desarmou.
Eu baixei o olhar, sentindo uma mistura de vergonha e dor.
- Eu me perdi nele, Bec. Deixei de me olhar no espelho, deixei de sonhar por mim. Tudo era "a gente", nunca "eu".
Rebeca segurou minhas mãos.
- E agora é hora de se encontrar. De sonhar por você.
Silêncio.
Por um momento, só o som da chuva nos acompanhou.
- Eu sinto medo, Bec. - confessei, num sussurro. - Medo de recomeçar. Medo de não dar conta. Medo de estar sozinha.
Ela apertou minhas mãos com força.
- Você já deu conta de tanta coisa, Amélia. Já perdeu tanto, e mesmo assim tá aqui, respirando, tentando. Isso é recomeçar.
As lágrimas voltaram, mas dessa vez não doíam tanto.
Eram lágrimas de quem começava, aos poucos, a acreditar.
Rebeca se levantou, foi até o fogão e serviu duas xícaras de café novo.
O cheiro quente preencheu a cozinha.
- Bebe. - ela disse, colocando uma xícara na minha frente. - A gente começa por aqui. Um café, um respiro e um passo de cada vez.
Eu ri, entre soluços. - Você sempre com esse jeito de psicóloga de esquina.
Ela riu também. - Alguém tem que lembrar você que é humana, né?
A risada dela me fez bem. Pela primeira vez em muito tempo, eu senti o coração aliviar um pouco.
Depois de alguns minutos de silêncio confortável, ela voltou a falar:
- E o trabalho novo?
Suspirei, olhando para o vapor que subia da xícara.
- Eu aceitei. Começo na segunda.
- Isso é ótimo, Amélia! - ela sorriu, orgulhosa. - Tá vendo? A vida tá se abrindo de novo.
- É, mas dá medo. Eu nunca trabalhei fora da loja, nunca tive cargo assim.
- Medo é só o primeiro sinal de que algo novo vai dar certo. - ela respondeu. - Você vai se sair bem.
Fiquei olhando pra ela por um tempo. Rebeca sempre teve esse dom de dizer as palavras certas, sem forçar, sem prometer nada. Só com verdade.
- Eu queria ter metade da tua fé, Bec.
Ela sorriu de canto. - A fé você já tem, só esqueceu onde guardou.
Meus olhos marejaram de novo, mas dessa vez de emoção boa.
Me levantei e a abracei forte.
- Obrigada. Por tudo.
- Não precisa agradecer, Amélia. - ela sussurrou, retribuindo o abraço. - É pra isso que as amigas estão aqui. Pra lembrar que você não está sozinha, mesmo quando acha que está.
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Mais tarde, quando Rebeca foi embora, fiquei sozinha outra vez.
A casa da Clara estava quieta. Peguei meu caderno e comecei a escrever.
"Querido Deus, obrigada por me permitir ir embora antes de perder a mim mesma."
Fechei os olhos. Respirei fundo. Pela primeira vez em anos, o silêncio não doeu tanto.
Eu não sabia o que viria depois.
Mas, pela primeira vez, eu sentia que o depois do adeus podia, sim, ser um começo.
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✨ Porque às vezes, o amor mais bonito é aquele que nasce quando tudo o resto acaba.
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