Ele me viu afundar, escolhendo salvar a mulher que adorava enquanto me deixava para morrer. O homem que um dia me salvou das ruas acabara de me condenar a um túmulo aquático sem um segundo olhar.
Mas eu sobrevivi. E enquanto me recuperava sozinha em um hospital, finalizei meu plano. Eu doaria o tecido único do meu coração para salvar sua preciosa Cíntia. Em troca, eu forjaria minha própria morte e finalmente compraria minha liberdade.
Capítulo 1
Ponto de Vista: Elara
A decisão de doar o tecido do meu coração e forjar minha própria morte foi a mais fácil que já tomei, porque foi a única que foi verdadeiramente minha.
"Você tem certeza disso, Sra. Bastos?", o cirurgião, Dr. Albuquerque, perguntou, seus olhos cheios de uma mistura de curiosidade clínica e pena. Ele ajustou os óculos, olhando do formulário de consentimento para o meu rosto, como se procurasse por um lampejo de dúvida.
Eu assenti, o movimento pequeno, mas firme. "Tenho certeza." Minha voz era um sussurro seco no silêncio estéril de seu consultório.
"Este é um procedimento altamente experimental. Vamos colher uma porção significativa do seu tecido cardíaco único. As propriedades regenerativas são surpreendentes, mas o processo em si... acarreta riscos extremos."
"Eu entendo", eu disse. Era mais do que um risco; era meu plano de fuga.
"E tudo isso", ele gesticulou vagamente para o arquivo em sua mesa, aquele com o nome de Cíntia Robinson estampado em letras garrafais, "Por ela?"
Eu não precisava ver o arquivo. Eu conhecia o nome dela. Estava gravado em cada superfície da minha vida, um fantasma assombrando cada cômodo da cobertura que eu deveria chamar de lar. Cíntia Robinson. A mulher que Bruno Campos realmente amava.
"Ela é muito importante para ele", eu disse, as palavras com gosto de cinzas.
Do lado de fora da janela, uma enfermeira ria com um paciente em uma cadeira de rodas. Eles pareciam felizes. Uma pontada de algo que eu não conseguia nomear, algo afiado e frio, me atravessou. Por um momento, imaginei como seria ser um deles. Normal. Cuidada.
Uma risada amarga escapou dos meus lábios antes que eu pudesse impedi-la. Uma substituta. Era isso que eu era. Um tapa-buraco para um fantasma, e agora, o sacrifício vivo para o retorno dela.
"A anomalia no meu coração", eu disse, minha voz vazia, "A coisa que supostamente me torna 'frágil' e 'quebrada'... pode salvá-la, certo? Pode se regenerar."
Dr. Albuquerque se inclinou para frente, sua máscara profissional escorregando. "Sra. Bastos, sua condição não é uma falha. É um milagre médico. Seu tecido cardíaco tem capacidades regenerativas com as quais apenas sonhamos. Chamá-lo de frágil é... uma ironia incrível."
A ironia não me passou despercebida. Eu nasci em uma terça-feira chuvosa em um hospital público em Itaquera. Os médicos deram uma olhada na estranha e rápida vibração no meu eletrocardiograma e declararam meu coração uma bomba-relógio.
Meus pais, jovens e apavorados, viram apenas um produto com defeito. Uma vida inteira de contas médicas e condolências sussurradas. Eles me deixaram no hospital, um pequeno embrulho com um coração defeituoso e um futuro em branco. Nem sequer me deram um nome. As enfermeiras me chamaram de Elara.
Crescer no sistema de abrigos de São Paulo foi uma aula de mestrado em invisibilidade. Eu era a "menina doente", aquela que não podia brincar com muita intensidade, aquela que as outras crianças empurravam porque sabiam que eu não revidaria. "Não toque nela, você vai pegar o coração quebrado dela", eles zombavam no parquinho.
A diretora do meu último abrigo, a Sra. Guedes, me desprezava. Ela via meu silêncio como desafio, minhas inclinações artísticas como um desperdício de espaço. "Pare com esses rabiscos, Elara", ela zombava, arrancando meu caderno de desenho. "Ninguém vai adotar uma boneca quebrada."
Então, aprendi a me virar sozinha. Eu fazia bicos depois da escola - lavando pratos, organizando livros - economizando cada centavo. Minha arte era minha única fuga, um mundo de cor e forma onde eu não era frágil, onde eu não era um erro.
Na noite em que conheci Bruno Campos, eu estava desenhando em um beco pequeno e molhado pela chuva na Vila Madalena, tentando capturar a forma como as luzes de neon sangravam no pavimento úmido. Eu tinha dezenove anos, trabalhava em um emprego sem futuro em uma cafeteria, mal conseguindo pagar o aluguel de um apartamento do tamanho de um armário. Dois homens, bêbados e agressivos, me encurralaram, suas risadas ecoando nas paredes de tijolos.
"Olha o que temos aqui", um deles arrastou as palavras, estendendo a mão para o meu caderno de desenho. "Uma artista."
O pânico me tomou, frio e sufocante. Meu coração martelava contra minhas costelas, um ritmo frenético e irregular que eu sabia ser o prelúdio para um desmaio.
E então, ele estava lá. Bruno Campos. Ele se movia com uma graça letal, uma tempestade em um terno feito sob medida. Ele não levantou a voz, não deu um soco. Ele apenas falou, seu tom baixo e carregado de uma autoridade que cortou a névoa de embriaguez deles. Os homens gaguejaram desculpas e fugiram.
Ele se virou para mim. Seus olhos, da cor de um mar tempestuoso, me examinaram da cabeça aos pés. "Você está bem?"
Eu só consegui assentir, agarrando meu caderno de desenho contra o peito.
Ele estendeu a mão. "Vamos. Você não está segura aqui."
Naquela noite, ele me levou para sua cobertura com vista para o Parque Ibirapuera. Parecia que eu tinha entrado em outra dimensão, um mundo de mármore polido, janelas de vidro altíssimas e uma riqueza silenciosa e imensa. Ele me deu um quarto, roupas, comida. Ele me disse que eu poderia ficar.
Eu me apaixonei por ele tão rápido que parecia que eu estava caindo de um penhasco. Ele era meu salvador, meu patrono. Ele foi a primeira pessoa que me fez sentir segura.
Bruno Campos era um magnata do mercado imobiliário, um rei de São Paulo. Seu nome era sussurrado com medo e reverência em salas de reunião por toda a cidade. Ele era implacável, poderoso e emocionalmente distante. Ele me cobria de presentes - vestidos de grife, joias caras, materiais de arte que custavam mais do que meu aluguel mensal - mas seu toque era sempre cuidadoso, seus olhos sempre guardando algo.
A primeira pista veio alguns meses depois do nosso estranho arranjo. Encontrei uma gaveta trancada em seu escritório. A curiosidade me venceu. Dentro, havia uma única foto gasta. Uma linda garota loira com um sorriso radiante, ao lado de um Bruno adolescente. No verso, em sua caligrafia familiar e afiada, dizia: Cíntia. Sempre.
Cíntia Robinson. A filha de uma dinastia rival, sua amiga de infância, aquela que escapou. Eu a via nas colunas sociais, um turbilhão de escândalos, festas e noivados desfeitos.
Ele estava me usando. Eu era uma distração bonita, um corpo quente para preencher o espaço que ela havia deixado. Cada presente que ele me dava, percebi mais tarde, era na cor favorita dela. Cada restaurante para onde ele me levava era um onde ela havia sido fotografada. Eu estava vivendo na sombra de um fantasma, uma substituta para um passado que ele não conseguia esquecer.
Então, seis meses atrás, o fantasma voltou.
Cíntia retornou a São Paulo, sua vida turbulenta finalmente a alcançando. Os tabloides diziam que ela estava falida, sua reputação em frangalhos. Ela procurou Bruno, chorando, alegando que sua condição cardíaca congênita, que era controlável, havia piorado de repente.
E assim, eu deixei de existir.
Bruno foi consumido. Ele dedicou seu tempo, sua atenção, seus vastos recursos a ela. Ele a instalou em uma suíte privativa no melhor hospital, contratou especialistas de renome mundial. Ele sentava ao lado de sua cama por horas, segurando sua mão, sussurrando promessas.
Eu vi. Eu vi o jeito que ele olhava para ela. Era um olhar que ele nunca me dera. Um olhar de amor cru e desesperado.
O golpe final veio na semana passada. Ele recebeu uma ligação do hospital, seu rosto se iluminando com uma esperança desesperada. "Eles encontraram um doador", ele disse para Cíntia ao telefone, sua voz embargada de emoção. "Uma combinação perfeita. Anônimo, mas pagarei o que for. Dez milhões, vinte. Não importa. Cíntia, meu bem, você vai ficar bem."
Eu estava parada na porta, sem ser vista. Ele estava falando de mim. Do meu tecido. Do meu coração milagroso. E ele estava colocando um preço nele.
A voz de Cíntia, enjoativamente doce através do telefone, respondeu: "Oh, Bruno. Você é meu herói. Seja quem for esse doador, ele tem sorte de ser útil para você."
Sorte.
Senti o último pedaço do meu coração, a parte que eu tentei desesperadamente proteger, rachar e virar pó.
Voltei para a cozinha, meus movimentos rígidos e robóticos. Ele me pedira para preparar um caldo de ossos para Cíntia, o favorito dela. Meu próprio estômago era um nó de ansiedade; eu não comia o dia todo. Mas a preocupação dele era singular.
"Elara", ele disse, sem nem mesmo olhar para mim enquanto desligava o telefone. "A sopa para a Cíntia está pronta? Ela precisa de força."
Eu assenti entorpecida, minhas mãos se movendo por conta própria. Peguei a panela pesada, meu aperto desajeitado. A cerâmica quente escorregou, queimando minha mão. Eu nem sequer estremeci. A dor era um eco distante comparado ao abismo que se abrira em meu peito.
Ele pegou a garrafa térmica da minha outra mão sem uma palavra de agradecimento, seu foco já a meio caminho da porta, de volta com ela.
Enquanto o observava sair, eu soube. Este amor era um beco sem saída. Minha vida, meu coração, era apenas uma ferramenta para a obsessão dele.
E então, eu fiz meu plano. Entrei na internet e comprei uma urna pequena e elegante. Do tipo que se usa para cinzas. Imprimi minha foto favorita de mim mesma - um sorriso raro e genuíno capturado em um dia ensolarado no parque. Eu a entregaria ao cirurgião, junto com meu pedido final.
Escondi a urna no fundo do meu armário, atrás de uma fileira de sapatos de grife que eu nunca usava.
Esta noite, eu deveria estar em uma gala com Bruno. Em vez disso, eu estava no beco atrás do hospital, o lugar onde minha nova vida começaria forjando minha própria morte. Um motor rugiu rua abaixo, e minha cabeça se ergueu de repente, meu coração disparando com um medo familiar e primitivo.