Então, em uma festa onde eu estava trabalhando como garçonete, ouvi meus pais tramando com os pais dele. Eles estavam arranjando o casamento de Thiago com Cristina, dizendo que eu tinha bagagem demais e era mercadoria estragada.
Minutos depois, na frente de todo mundo, Thiago se ajoelhou e pediu minha irmã em casamento.
Enquanto a multidão aplaudia, meu celular vibrou com uma mensagem dele: "Sinto muito. Acabou."
Quando os confrontei em casa, eles admitiram a verdade. Ter me encontrado foi um erro. Eu era apenas um constrangimento que eles precisavam administrar, e tinham me feito um favor ao dar Thiago para Cristina.
Para me calar, minha irmã se jogou escada abaixo e gritou que eu a tinha empurrado. Meu pai me espancou e me jogou na rua como lixo.
Enquanto eu estava caída e machucada na calçada, meus pais disseram à polícia que eu era uma agressora violenta. Eles queriam me apagar, mas estavam prestes a descobrir que tinham acabado de começar uma guerra.
Capítulo 1
A lembrança de me perder era um borrão, um turbilhão caótico de luzes brilhantes e barulhos altos do parque de diversões. Eu tinha quatro anos. Por dez anos, o sistema de acolhimento foi a minha vida, uma série de casas estranhas e ombros ainda mais frios. Então eles me encontraram. Minha família.
Os Almeida.
Nos primeiros meses, pisei em ovos, desesperada pelo amor que imaginei por uma década. Eu dava a eles cada centavo que ganhava com meus dois empregos, na esperança de comprar um lugar em seus corações. Eles chamavam de minha contribuição, minha forma de retribuir pelos anos de busca.
Minha irmã gêmea, Cristina, não precisava contribuir. Ela era a filha de ouro, aquela que nunca se perdeu. Cursava uma universidade de ponta, seu futuro tão brilhante quanto o meu era sombrio.
Eu achava que tinha uma coisa boa na minha vida. Thiago. Meu namorado. Ele era gentil, ou assim eu pensava. Ele segurava minha mão e me dizia que meu passado não importava.
Naquela noite, eu estava trabalhando como garçonete em uma festa de gala num jardim suntuoso no Morumbi. Era para uma família que Thiago conhecia, o tipo de gente com grana antiga e dentes perfeitos. Meus próprios pais estavam lá, socializando sem esforço. Eu os vi rindo com os pais de Thiago, uma imagem perfeita do sucesso suburbano.
Eu estava nos bastidores, um fantasma em um uniforme preto e branco, repondo taças de champanhe. Tentei encontrar o olhar de Thiago, mas ele parecia estar me evitando. Um nó de angústia se apertou no meu estômago.
Então, me escondi atrás de uma grande sebe bem aparada para pegar mais taças e ouvi as vozes deles. Minha mãe, Alice, com seu tom leve e conspiratório.
"O Thiago é um rapaz maravilhoso. Tão ambicioso. O par perfeito para a nossa Cristina."
Eu congelei, a bandeja pesada de taças de repente pareceu não pesar nada em minhas mãos.
"Ele estava um pouco hesitante", disse meu pai, o Coronel, sua voz um ronco baixo. "Preocupado com... as aparências."
"Claro", interveio a mãe de Thiago, a Sra. Monteiro. "Mas nós o convencemos. Cristina é a nora que sempre quisemos. Polida. De boa família."
Minha própria família. Mas eles não estavam falando de mim.
"E a Laura?", perguntou o pai de Thiago, com um toque de preocupação na voz.
Alice riu, um som que parecia vidro se quebrando. "Ah, não se preocupe com a Laura. Ela... teve uma vida difícil. Ela vai entender. Ela não é exatamente adequada para uma família como a de vocês. Toda aquela bagagem do sistema."
"É para o melhor", afirmou o Coronel, seu tom final. "O Thiago sabe que a Cristina é a escolha certa. Ele está apenas fazendo o que é necessário para garantir seu futuro."
O meu mundo desabou. Meu fôlego ficou preso na garganta. Eu não conseguia me mover. Só conseguia ouvir enquanto eles finalizavam os detalhes da minha substituição.
Alguns minutos depois, a música diminuiu. Thiago caminhou para o centro do pátio, um microfone na mão. Ele sorriu, um sorriso charmoso e ensaiado que agora eu via que era completamente vazio. Minha mãe e meu pai estavam ao lado dele, radiantes.
Cristina deslizou para o seu lado, o vestido dela brilhando sob as luzes da festa. Ela era exatamente como eu, mas perfeita, intacta.
"Cristina", começou Thiago, sua voz amplificada para todos ouvirem. Ele se ajoelhou. "Você quer casar comigo?"
Um suspiro percorreu a multidão, seguido por uma onda de aplausos. Eu fiquei atrás da sebe, paralisada, assistindo minha vida desmoronar na frente de cem estranhos sorridentes.
Minhas mãos começaram a tremer incontrolavelmente. A bandeja escorregou. O vidro se estilhaçou no caminho de pedra, o som abafado pela comemoração.
Ninguém notou.
Todos estavam aplaudindo Cristina, Thiago, o casal perfeito. Meus pais abraçaram os pais de Thiago. Cristina estendeu a mão, um diamante enorme capturando a luz.
Meu celular vibrou no meu bolso. Uma mensagem de Thiago.
*Sinto muito, Laura. Acabou. Meus pais acham que é o melhor.*
Era isso. Oito palavras para apagar nossa história.
Eu me virei e corri. Não sabia para onde estava indo. Apenas corri, para longe das risadas, para longe do mundo perfeito e curado deles. O uniforme preto e branco parecia uma jaula.
Finalmente cheguei em casa, a casa deles, horas depois. Minha chave arranhou na fechadura. A sala de estar estava escura, mas eu podia ouvir suas vozes alegres vindas da cozinha.
Eles entraram no corredor, seus rostos corados de champanhe e vitória.
"Aí está você", disse Alice, seu sorriso não alcançando os olhos. "Você perdeu toda a emoção."
Cristina não estava com eles. Provavelmente ainda estava comemorando com seu novo noivo.
Olhei para seus rostos felizes. A traição era tão completa, tão casual.
"Eu quero meu dinheiro de volta", eu disse, minha voz mal um sussurro.
O sorriso do Coronel desapareceu. "O que foi que você disse?"
"Eu quero cada centavo que eu já dei a vocês. Para a faculdade da Cristina. Para o carro dela. Para esta casa." Minha voz ficou mais forte. "Eu quero de volta."
Alice zombou. "Não seja ridícula, Laura. Essa foi a sua contribuição para esta família."
"Que família?", perguntei, uma risada amarga escapando dos meus lábios. "A família que me vende por um modelo melhor?"
"Você está sendo dramática", disse o Coronel, dando um passo à frente. Ele era um homem grande e usava seu tamanho para intimidar. "Você nunca foi uma boa opção para o Thiago. Nós te fizemos um favor."
"Um favor?", repeti, a palavra com gosto de veneno. "Vocês me destruíram."
"Você já estava danificada quando te encontramos", disse Alice, sua voz afiada e cruel. "Nós te demos um lar. Demos um nome de família. Você deveria ser grata."
"Grata? Pelo quê? Por ser o burro de carga de vocês? Por dormir no menor quarto enquanto a Cristina ganhava um jogo de quarto novo todo ano?"
"A Cristina merece!", gritou Alice. "Ela é uma fonte constante de orgulho. Você é uma lembrança constante de um erro."
"O erro de me perder?"
"O erro de te encontrar", disse o Coronel, sua voz seca.
As palavras me atingiram mais forte que um golpe físico. Eu me agarrei à esperança de que, no fundo, eles me amavam. Que eles eram apenas... falhos. Mas não havia amor aqui. Havia apenas ressentimento e cálculo.
Lembrei-me de algo que a assistente social me disse quando eles foram localizados. O boletim de ocorrência dizia que a busca foi cancelada depois de dois anos. Eles seguiram em frente. Começaram uma nova vida, uma vida perfeita com sua única filha perfeita. Me encontrar uma década depois foi apenas um inconveniente que eles tiveram que administrar.
Todos os anos que passei sonhando com eles, eles passaram me esquecendo.
A raiva que estava fervendo por anos finalmente transbordou. Era um fogo quente e purificador, queimando o último resquício da minha patética esperança.
"Vocês não me procuraram", eu disse, minha voz tremendo de fúria. "Vocês pararam de procurar depois de dois anos."
O rosto de Alice ficou pálido. "Quem te disse isso?"
"Não importa", eu disse, uma risada selvagem e quebrada borbulhando do meu peito. "Eu sei. Vocês me deixaram para apodrecer."
"Fizemos o que era melhor", disse Alice, abandonando a atuação. Seu rosto era uma máscara de fúria fria. "A Cristina precisava de uma vida normal. Ela não precisava da sombra de uma irmã perdida pairando sobre ela."
"Então vocês deram a ela a minha vida", sussurrei. "Vocês deram a ela o meu namorado."
"Ela era melhor para ele", afirmou o Coronel simplesmente, como se fosse uma transação comercial. "Isso eleva a família. Você deveria estar feliz por sua irmã."
Feliz. Eles queriam que eu estivesse feliz.
Olhei para essas duas pessoas que compartilhavam meu sangue. Eles não eram meus pais. Eram meus donos. E eles tinham acabado de me trocar.