Respirei fundo. Uma respiração profunda, cansada, do tipo que tenta encontrar forças não se sabe mais onde. Olhei ao redor. A pequena cozinha era apertada, mas até aconchegante. Se não fosse pelos azulejos lascados, pelo fio da geladeira remendado com fita isolante e pelo cheiro de mofo vindo da parede que dividia a área de serviço com o banheiro, quase poderia parecer lar.
Mas não era. Era o campo de batalha onde eu lutava todos os dias para manter minha mãe viva.
Do quarto, ouvi a tosse fraca dela. Me pus de pé na hora. Corri até lá e a encontrei sentada na cama, com o travesseiro nas costas e os olhos marejados de cansaço.
- Mãe, você está bem?
Ela forçou um sorriso. Aqueles sorrisos que toda mãe dá para fingir que está tudo bem, mesmo quando está despedaçada.
- Estou... só tossi um pouco.
- Eu vou preparar seu chá - falei, pegando o termômetro. - Deitou direitinho? Tomou os remédios?
Ela assentiu, mas eu sabia que mentia. Estava poupando os comprimidos. Já tinha feito isso antes, e eu percebi. Não porque ela quisesse, mas porque sabia que eles estavam acabando - e porque eu ainda não tinha conseguido pagar a última caixa que pegamos na farmácia, mesmo com o desconto da moça que se comoveu com a nossa história.
Abaixei o olhar, tentando engolir a culpa. Eu fazia tudo que podia. Trabalhava de manhã até o início da tarde como atendente numa cafeteria no centro e, à noite, em uma loja de conveniência 24h. Dormia quando dava, comia restos da cafeteria ou alguma coisinha vencida da loja. Vivia à base de café. A energia que me movia já não era mais física. Era necessidade.
Aos vinte e seis anos, minha vida se resumia a sobreviver.
Quando o chá ficou pronto, voltei ao quarto e entreguei a xícara à minha mãe com cuidado. Os dedos dela tremiam um pouco.
- Você vai melhorar - sussurrei, como se falando baixo pudesse tornar aquilo mais real. - A cirurgia está chegando. Só mais um pouco, tá?
Ela sorriu de novo. Aquela mulher era feita de aço e ternura. Aguentava dores intensas com a mesma dignidade com que fazia carinho no meu rosto. Sofria calada para não me preocupar, mesmo quando tudo dentro dela gritava.
Voltei à cozinha e me encostei na porta. Peguei o caderno velho onde anotava as contas. Aluguel: em atraso. Luz: vencida. Água: também. O cartão do mercado já estava estourado. E o principal: o dinheiro do remédio acabou.
Só tínhamos mais dois comprimidos.
Dois.
Fechei os olhos com força. Não adiantava chorar. Chorar não pagava conta, não salvava vidas, não comprava medicamento.
Peguei o celular e mandei uma mensagem para a Cinthia.
"Tá por aí?"
Ela respondeu em segundos.
"Tô sim, amiga. Tá tudo bem?"
"Posso te ver hoje à noite?"
"Claro. Te encontro no mesmo lugar de sempre?"
"Sim. Preciso conversar."
Cinthia era minha melhor amiga desde a faculdade, que eu infelizmente tive que abandonar no segundo semestre. Ela continuou. Arrumou um estágio, depois um emprego... e depois algo muito diferente.
Ela nunca me contou abertamente. Mas eu sabia. E hoje... pela primeira vez... eu estava cogitando ouvir.
O bar onde nos encontrávamos ficava num bairro boêmio da cidade. Não era caro, mas também não era o tipo de lugar onde se via pobreza escancarada. Cheguei atrasada, com o avental da cafeteria ainda sujo de café.
Cinthia me olhou com aquele olhar de quem já sabia. Não disse nada até que eu falasse.
- Eu não tenho mais como continuar, Cin. - Meus olhos arderam. - O dinheiro acabou. A farmácia me ligou hoje dizendo que não podem mais liberar o remédio. E a cirurgia... mesmo pelo SUS, ainda vai demorar. Ela precisa de tratamento enquanto espera. E eu...
Ela segurou minha mão. Eu tremia.
- Me diz o que você quer saber - ela disse, calma.
- Aquilo que você me falou, da outra vez... sobre... um cliente. Ainda é verdade?
Cinthia não respondeu de imediato. Ela me olhou nos olhos, séria, e suspirou.
- É. Ainda é verdade. - Ela fez uma pausa. - Mas, Isa... isso não é brincadeira. Não é um date. Não é um jogo.
- Eu sei.
- Não sabe. - Ela apertou minha mão. - É um caminho sem volta. Não tô falando de você virar garota de programa - ela abaixou a voz - mas esse tipo de cliente... ele paga por silêncio, por aparência. Por submissão, às vezes. Alguns são escrotos. Outros... só estão quebrados. Mas nenhum quer envolvimento. E a maioria deles paga alto pra garantir que não vai haver sentimento.
Engoli seco.
- E por que você faz?
Ela sorriu. Mas foi um sorriso triste.
- Porque eu me cansei de sofrer por amor e de aceitar esmola. E porque tem gente rica o suficiente pra pagar por companhia... E eu aprendi a colocar preço no meu tempo. Eu escolho quem aceito. Mas cada escolha tem seu peso.
Fiquei em silêncio.
- Se você quiser... - ela continuou - eu posso indicar uma pessoa. Alguém que já tá acostumado. Que não machuca. Que só quer companhia, sem perguntas.
- Como assim... companhia?
- Uma noite. Só isso.
Meus olhos arderam. E antes que a emoção me engolisse, balancei a cabeça com firmeza.
- Não. Eu não consigo.
Cinthia respeitou. Apenas assentiu.
- Tudo bem. Só não demore muito para se decidir. Porque às vezes, quando a gente cai, não tem mais quem segure.
Voltei pra casa me sentindo suja. Não por ela. Por mim. Por ter cogitado. Por ter considerado vender meu corpo por dinheiro.
Passei a madrugada ao lado da minha mãe, controlando a febre e fazendo compressas.
No dia seguinte, saí de casa sem tomar banho. Tive que pedir ao síndico para me dar mais cinco dias para pagar o aluguel. Ele disse que se eu atrasasse de novo, chamaria o advogado.
Na cafeteria, um cliente grosseiro me fez derrubar um copo de suco no chão. Na loja, quase adormeci no caixa.
Mas nada... nada foi pior que o que aconteceu dois dias depois.
Cheguei do trabalho por volta das sete da manhã. Estava exausta. Minhas pernas doíam, minha cabeça latejava. Entrei em casa e encontrei minha mãe caída no chão do banheiro.
Corri até ela, desesperada.
- Mãe! Mãe, me ouve! - Ela estava consciente, mas fraca demais pra falar.
Chamei a ambulância aos prantos.
No hospital, os médicos disseram que ela teve uma crise respiratória. Ela estava com o pulmão comprometido. A falta dos remédios agravou tudo. Eles conseguiram estabilizá-la, mas me olharam com aquele ar de julgamento quando souberam que ela não estava em tratamento constante.
- Não é por falta de cuidado - expliquei. - É por falta de dinheiro.
Eles não responderam.
Voltei pra casa sozinha, o coração em ruínas. Minha mãe ia ficar internada por tempo indeterminado. Eu ainda precisava continuar trabalhando. Mas agora tudo em mim gritava desespero.
Foi só então, quando não havia mais saída, quando não havia mais onde cair... que peguei o celular.
As mãos tremiam enquanto eu digitava.
"Cin... ainda posso aceitar aquela proposta?"
A resposta veio quase instantaneamente.
"Pode sim. Me dá alguns dias, Vou dar o meu melhor por você"