O salão estava lotado de gente rica, sorrisos falsos e intenções perigosas. Lustres de cristal pendiam do teto abobadado, refletindo a luz em mil fragmentos cintilantes, como se cada riso escondesse uma lâmina. Era o tradicional baile beneficente da Alta Justiça, um evento tão cheio de hipocrisia quanto de vinhos caros. Ela só estava ali porque o pai, Rodrigo Montenegro, promotor de justiça e pesadelo da máfia local, pedira - ou melhor, ordenara.
"Fique atenta. Os Moretti podem aparecer", ele havia dito, enquanto ajeitava a gravata frente ao espelho de moldura dourada, com a voz carregada de tensão mal disfarçada.
Os Moretti. O nome que rondava seu subconsciente como um eco antigo. Famílias sussurravam sobre eles em jantares discretos. Empresários tremiam ao ouvir rumores. Jornalistas desapareciam após investigar demais. Um império de silêncio e sangue, enraizado onde o Estado não alcançava.
Helena respirou fundo e ajeitou a alça fina do vestido preto. O tecido, de um cetim leve e maleável, abraçava seu corpo com elegância discreta, como se tentasse protegê-la da hostilidade do ambiente. Seu cabelo, preso em um coque baixo e preciso, deixava à mostra o pescoço delicado e a tatuagem minúscula de uma andorinha - símbolo de liberdade, algo que ela nunca teve completamente. Liberdade era sempre condicionada, sempre vigiada.
Enquanto cruzava o salão, sentiu olhares deslizando sobre sua pele como serpentinas invisíveis. Mas um, em especial, queimava.
Ele a observava de longe, encostado em uma das colunas de mármore. Máscara preta cobrindo metade do rosto, terno impecável, postura de quem nasceu mandando no mundo. Era como se o ambiente inteiro dobrasse levemente ao redor dele, como se a gravidade lhe obedecesse. Não disse uma palavra. Só olhou. E aquilo já foi o suficiente para que um arrepio percorresse a espinha de Helena, gelando-a por dentro, mesmo sob as luzes douradas.
Ela desviou o olhar, tentando disfarçar o impacto. Mas não conseguiu evitar o frio na barriga. Algo nela reconhecia aquele homem - não o rosto, mas a energia. Sombria. Perigosa. Magnética. Como se ele carregasse um segredo que estava prestes a devorá-la.
- Aceita uma dança? - A voz dele chegou como um sussurro rouco atrás dela, segundos depois, vibrando como trovão abafado em sua nuca.
Helena se virou, surpresa. Ele estava ali, tão perto que podia sentir o perfume amadeirado que vinha dele, sofisticado e penetrante, o calor do corpo, a tensão invisível que os envolvia como uma corrente elétrica.
- Acho que não - respondeu, tentando manter a firmeza na voz, embora sua garganta parecesse seca e o coração, acelerado.
- Uma dança. Só uma - ele insistiu, estendendo a mão enluvada, o gesto controlado, quase desafiador.
Ela olhou ao redor. Seu pai conversava com juízes e desembargadores, distraído com taças de champanhe e discursos sobre ética. Ninguém os observava. Ninguém saberia que, em poucos segundos, o destino dela mudaria para sempre.
Ela aceitou.
A mão dele encaixou-se na dela com firmeza. E quando ele a puxou para o centro do salão, o mundo pareceu parar. O ambiente se dissolveu ao redor deles - música, luz, vozes - tudo se tornou pano de fundo para algo mais intenso. Eles dançaram como se fossem os únicos ali. A música clássica, tocada por uma orquestra impecável, se misturava ao som acelerado do coração dela, pulsando em cada nota.
- Seu nome - ele pediu, com os olhos ainda nos dela, intensos, interrogativos.
- E se eu não quiser dizer? - perguntou, erguendo o queixo levemente, sem desviar o olhar.
- Então vou adivinhar - disse, com um meio sorriso nos lábios. - Você tem cara de ser o tipo de mulher que não deveria estar aqui. Moral demais. Desejo demais. Mas ainda assim... está.
Helena sorriu, nervosa. Um sorriso curto, instável, como o fio de uma lâmina.
- E você tem cara de alguém que deveria estar preso.
Ele riu, sem negar. E o som do riso pareceu ainda mais perigoso que o silêncio.
A música terminou. Ele a conduziu com naturalidade até o jardim lateral, longe do salão, da orquestra, das câmeras e das palavras educadas. O céu estava limpo, como se soubesse da cena que se desenrolaria ali. A lua refletia nos olhos dele, transformando-os em algo entre prata e trevas.
- Preciso ir - ela murmurou, tentando recuar, sentindo o senso de dever gritar dentro de si.
Mas ele a puxou com delicadeza pela cintura, como quem segura algo prestes a fugir.
- Ainda não.
O beijo veio como um trovão. Selvagem. Inesperado. Quente. O tipo de beijo que não se dá em estranhos... a não ser que sua alma reconheça algo que sua mente ainda não entende. Foi como se mundos colidissem, como se ela tivesse cruzado uma fronteira invisível da qual não haveria retorno.
Ela cedeu por alguns segundos. Depois, se afastou, com os lábios trêmulos, o coração descompassado e a respiração curta.
- Eu... não sei seu nome.
Ele a olhou com um meio sorriso, a mão ainda na cintura dela, o olhar como um segredo que se recusa a ser revelado.
- Melhor assim.
E desapareceu pela escuridão do jardim, como uma sombra que nunca esteve realmente ali - mas que jamais seria esquecida.