Ele não era um homem fraco para bebida, raramente lhe causavam algo a mais que uma leve e passageira alegria e talvez um rubor nas faces, mas aquela bebida, muito popular entre os aldeões, verdadeiramente lhe derrubava. E o pior, é que geralmente ele acabava em alguma confusão sempre que a bebia.
Piscou várias vezes os olhos, se acostumando a claridade e pôde reconhecer onde estava: em algum dos quartos da Red Mèrcet, uma estalagem pouco elegante da capital. Sentou-se na cama e percebeu dois pares de pernas femininas enroladas ao lençol grosseiro.
As donas das pernas dormiam profundamente, e não seria ele a acordá-las. Levantou-se com cuidado e procurou sua camisa e suas botas, que estavam jogadas pelo quarto. Vestiu-se rapidamente e saiu do quarto, deixando uma boa quantia de moedas na mesa de cabeceira, talvez mais do que as mulheres ali dormindo estivessem acostumadas a receber pelos seus serviços.
Deu alguns passos pelo corredor e foi inesperadamente puxado pelo braço direito para dentro do quarto vizinho. Em apenas alguns segundos, James segurava seu raptor, apertando contra sua garganta a lâmina afiada de sua adaga. Então reconheceu os cabelos vermelhos e os anéis de ouro do meio irmão, e o soltou imediatamente.
- Futu-i Thomaz. Me deu um susto enorme. Podia ter me chamado, nem estava lembrando que você tinha vindo junto ontem.
-Shiiii... Fala baixo, Jay. Estou encrencado... – o mais novo parecia realmente apavorado.
Então James olhou para o meio irmão, vestido apenas com camisa, o cabelo vermelho desalinhado e duas grandes sombras abaixo de seus olhos. Em segundo plano, atrás dele, uma bela garota, loira e com a pele muito clara e macia, pouco condizente com a prostituição, dormia suavemente sobre a cama, logo abaixo dela, no lençol branco, uma mancha de sangue já um pouco seca...
-O que você fez com a garota, Thommy! Você sabe que eu já tirei você de muitas encrencas, mas como vamos sair dessa estalagem carregando um corpo sem ninguém perceber? – vociferou tentando manter o tom de voz ainda baixo que só o irmão pudesse ouvi-lo.
-N-não é nada disso – Thomaz tinha os olhos perdidos em algum lugar no tempo ou no espaço, enquanto James amassava os cabelos loiros escuros e sob os dedos, absolutamente atordoado com a preocupação.
-Seu pai vai me matar, e depois vai te deserdar... Como você pode ir dormir com uma prostituta e matar ela?
-Prostituta? – uma voz confusa e suave interrompeu a bronca de James – quem matou uma prostituta?
Os dois viraram ao mesmo tempo e encararam a garota, agora sentada na cama, meio enrolada nos lençóis, com uma longa e encaracolada cabeleira loira descendo sobre os ombros. Sua face estava muito rubra, fosse pela vergonha ou pela força do ódio com que ela os massacrava com o olhar.
E então o entendimento fez a cabeça de James doer ainda mais. Lembranças da noite anterior vieram à tona. O pedido do irmão já bêbado, a ida até a casa da garota, o caminho de volta à estalagem. A dança. A bebida. Tudo começou a fazer o estômago de James revirar.
-Seu pai vai te matar. Você sabe disso! – James tentou pensar em alguma coisa enquanto andava pelo quarto e o irmão conversava algo com a garota. Ele tinha razão de estar desesperado. Se ele tivesse matado uma prostituta, por mais terrível que fosse, o pai poderia tapar a boca de testemunhas com dinheiro, que não lhe faltava, ou com ameaças, já que era o maldito rei.
Mas Thomaz havia deflorado uma virgem. E ainda pior, não era uma simples virgem camponesa, tratava-se da única filha do Duque de Prior, amigo íntimo do rei e grande proprietário de terras. A mãe da menina havia morrido durante o parto e o duque nunca havia se casado novamente, dedicando a vida a cuidar dos negócios e da filha única.
A noite passada, a noite de jogos do rei, enquanto todos estavam se divertindo em jogatina e bebedeira, o herdeiro e o bastardo do rei haviam saído furtivamente do palácio, sequestrado a filha do Duque e participado de uma festa na aldeia. Tudo sem o conhecimento do rei.
-Eu sei o que está pensando. Mas eu vim porque eu quis. Sou apaixonada pelo Thommy desde que nos conhecemos, ainda crianças...
-Vocês ainda são crianças – James a cortou antes que pudesse dizer mais algo.
-Falou o irmão 3 anos mais velho...
-Meio irmão. Eu tive a sorte de ser o filho da concubina do rei. Só isso. – deu de ombros, sem querer comentar sobre o assunto.
-Já disse que vim por vontade própria, se os dois me derem licença vou me vestir e voltar pra casa.
-As coisas não funcionam assim, senhorita. Se alguém mais souber o que houve aqui, você estará arruinada, e provavelmente o acordo de paz com o casamento do Thomaz também.
A garota olhou para o príncipe e seus olhos ficaram marejados.
Thomaz também ficou instantaneamente triste e quase amoleceu o coração do irmão. Ele claramente não queria o casamento arranjado.
-Vamos tentar resolver isso. Fiquem aqui e não saiam – disse fechando a porta atrás de si.
*
Assim que a porta foi fechada, Thomaz se aproximou da cama e deu um beijo casto nos lábios de Isobel.
-Você sabe que não quero me casar com ela. Mas não sou dono de mim.
Isobel fechou os olhos em resignação e soltou um breve suspiro. Era o preço de estar apaixonada por um príncipe.
-Eu sei disso. Mesmo assim, não é fácil pensar no que será amanhã.
-Pensaremos no amanhã, amanhã... Por hoje quero apenas pensar que você é minha – falou no meio dos seus cabelos.
Isobel sentiu um breve alívio, mas logo algo lhe incomodou:
-Ela é bonita? Sua noiva? – perguntou triste.
-Não mais que você – Thomaz a abraçou – só a vi uma vez quando foram assinados os acordos, éramos bem pequenos, mas me lembro dela não ter nada de especial. Parecia uma menina comum, muito tímida e estranha.
Isobel apenas assentiu com a cabeça e ambos ficaram abraçados em silêncio quando a porta se abriu e James entrou com uma grande capa preta feminina, bastante velha, e lhe entregou.
-Vista-se vamos sair pelos fundos. O capitão do Lorde Prior acaba de chegar na estalagem, não podemos ser pegos.
*
Após deixar a filha do conde no bosque ao lado de sua casa, James observou até que ela estivesse em segurança em casa, e então voltou a companhia do irmão que esperava oculto na estrada.
Cavalgaram em silêncio por um longo tempo, até que Thomaz emparelhou seu garanhão ao de seu irmão.
-Não há nada mesmo a fazer? – questionou Thomaz, no fundo já sabendo a resposta.
-Não entendo muito de política, ou de leis, você sabe que sou um homem de armas, não de livros. Mas conheço a lei da honra da palavra de um homem, e sei que esta não deve ser desfeita –James afirmou, desanimado.
-Por Deus! Não fui eu quem empenhou minha palavra! Não é justo que tenha eu de cumpri-la... – o jovem príncipe estava visivelmente revoltado.
-Sua posição de sangue real te impede de tomar suas próprias decisões, você sabe disso. Quem nasce na realeza não pertence a si mesmo, mas pertence à vontade do povo... – disse James imitando a voz do monarca. Não havia diversão em sua voz. Apenas um pouco de amargura.
- Você também é da realeza, James. Nem por isso vejo você seguindo essas malditas vontades do povo.
- É diferente. Eu não sou da família real. Sou um bastardo. Não sou o herdeiro do trono.
-Mas deveria, já que é o primogênito do rei – Thomaz sabia onde essa conversa chegaria, ainda assim provocava o irmão.
-Chega dessa conversa –cortou– se quer chegar antes que alguém note a sua fuga, precisa aprender a cavalgar como um homem.
Antes que o irmão pudesse responder, instigou o mustang negro e tomou rumo do castelo, enquanto o jovem príncipe tentava o alcançar.
*
James entrou na antessala dos aposentos reais sem ser anunciado. Apenas cumprimentou a guarda na porta e empurrou a pesada porta. O rei encontrava-se sentado na banheira de costas em direção à porta, e um delicioso aroma de ervas se erguia no vapor.
Puxou uma cadeira da escrivaninha e sentou-se, deixando o barulho do arrastar da cadeira anunciar sua chegada.
Domenicus II fez um breve gesto, e a criada que lhe servia na banheira rapidamente se levantou, as roupas molhadas deixando ver suas formas quase esqueléticas. Sem uma palavra a criada enrolou-se aos trapos que chamava de vestido e saiu pela porta lateral do aposento.
Apenas um gesto com a mão e um criado, muito pálido, entrou com o roupão do rei, ajudando-o a se vestir. Depois, saiu dos aposentos tão silencioso quanto entrara.
-Vossa majestade precisa mesmo de criadas tão jovens para satisfazer sua lascívia? Essa menina não tem mais que 15 anos – James externou sua repugnância.
-Vejo que tem seguido meus conselhos e colocado pra fora suas opiniões, meu filho – disse abrindo um franco sorriso – só não se acostumou ainda a me chamar pelo que sou: seu pai.
-Não me sinto à vontade para isso – foi sincero – mas diga-me, por que mandou me chamar?
-Ainda espero ouvir você me chamar de pai, assim como você fazia na infância. Nada mudou – disse convicção o rei – mas agradeço que tenha vindo tão rapidamente. Notei que não passou a noite de jogos conosco – James podia ouvir seus próprios batimentos, o medo de que o pai soubesse o que havia ocorrido na noite anterior o corroía – nem Thomaz. Sei que devem ter se entediado com os velhos, mas prefiro que estejam presentes para aprenderem mais sobre política.
James soltou o ar, que nem notara que estava prendendo, e apenas assentiu.
-Já que não estavam aqui, acabaram não sabendo da notícia – o rei caminhou até a escrivaninha a frente de James, pegando uma carta com o selo da família real ucraniana – a noiva de seu irmão deve chegar amanhã ao porto. Preciso que prepare um destacamento para a segurança da princesa. E preciso da sua presença para recebê-la no castelo.
James ficou um tanto confuso, uma vez que, sendo um bastardo, não fazia parte da família real para precisar recepcionar ninguém.
Como sabia ler seu filho como ninguém, Domenicus completou:
-Já disse que você precisa se habituar à política. Tudo isso faz parte.
-Certo. Estarei lá – concordou com um muxoxo de desgosto – mais alguma coisa, senhor?
-Sim. Peça ao Antomnus que venha até aqui. Preciso que prepare os aposentos para a princesa.
O rapaz saiu do quarto real bastante contrariado e após avisar ao mordomo real que atendesse ao rei, bateu à porta do irmão.
-Já sabe que sua noiva chega amanhã? – disse, colocando a cabeça pela porta entreaberta do quarto.
-Sim. Parece que ela virá com o próprio navio – Thomaz fez uma cara de desgosto – pode imaginar uma princesa com seu próprio navio?
-Dizem que ela é bem excêntrica –James riu, assentando-se a vontade na cadeira.
-Você diz excêntrica para não dizer louca, né? –ambos riram, mas logo James ficou muito sério.
-O que você pensa em fazer com Isobel?
-Eu a amo. E não temos culpa desse acordo. Também não posso desapontar nosso pai – Thomaz estava visivelmente desanimado – mas ainda tenho esperança de encontrar uma saída.
-Thommy, não pode condenar Isobel a uma existência como a da minha mãe. Você sabe que isso aconteceu com eles, você está tentando repetir os mesmos erros do seu pai.
-Não, irmão. Eu jamais faria isso com Isobel. Mas talvez eu possa fazer minha noiva me repudiar antes do casamento. Uma parte do acordo é que ela só se casará aos 18 anos, e ela deverá aceitar por livre e espontânea vontade. Por isso ela ficará conosco esses 8 meses, para que possa decidir se aceita se casar comigo. Meu plano é fazê-la desistir.
James ouviu o plano do irmão em silêncio pelos próximos três quartos de hora, era um plano elaborado e talvez, apenas talvez fizesse algum sentido.