Essa obra é dedicada a memória de Aldiane, morta na chacina das rosas na Baixada do Sapo no dia 15 de setembro de 2011, aos 19 anos.
"Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr"
Ame seus amigos com todo o seu coração.
Acordei no meio da madrugada estranhando o silêncio. Era um final de semana, e as festas na quebrada começavam na quinta e terminavam no domingo, regadas a muita bebida e som alto. As vezes em cada canto era um tipo de som, fazendo os moradores mais sérios quase enlouquecer.
Mas não naquela madrugada. Todos os sons estavam desligados. A quebrada estava em luto. As pessoas se recolheram cedo. Até os adolescentes estavam respeitando as famílias enlutadas e também o perigo que uma chacina representa. Ia demorar um pouco para todos voltarem as suas rotinas, mesmo porque tudo estava fervendo de polícia. Também ia demorar pros "homens" saírem da quebrada e dar espaço para os bailes voltar a acontecer.
Me forcei a voltar a dormir. Estava exausta, osbuscolhos doendo de tanto chorar, há dois dias não dormia, só chorava e bebia. Dom veio me naquela noite, passou umas duas horas comigo e minhas irmãs, rindo alto como sempre e fazendo piadas de tudo. Foi por isso que meu coração se acalmou um pouco. Dom era meu melhor amigo, nos conheciamos a quase 10 anos e ele era o amor da minha vida. Então eu sabia que teria essa visita. Minhas duas irmãs mais novas riram demais com ele no tempo que ficou com a gente, mas eu sabia que era uma fachada de defesa que ele sempre estampa no rosto quando a dor lhe é insuportável.
Ele ficou pouco tempo, Tereza veio buscá-lo. Mal falou comigo e deu um esporro nele ali mesmo, dizendo que os pais estavam preocupados. Dei razão a ela e não fiquei chateada. A dor de todos era insuportável.
Entrei depois de me despedir dele e dormi quase que imediatamente. Estava exausta. Desde que recebi a notícia pelo meu pai na manhã anterior, recebi muitas vistas. Todo mundo conhecia o trio parada dura formado por Adrielle, Dom e Beatrice, que ninguém conseguia entender se eram um casal. Normal. Nem nós sabíamos! Também tinha chorado demais depois da crise de riso nervosa que me deu. E aí comecei a beber. Quando Dom chegou mais cedo, tinha acabado de abrir uma lata de cerveja e ele brigou comigo, nem me deixou terminar.
Agora, eu nem conseguia voltar a dormir. Por mais que tenha bebido nesses dois dias, parece que não fazia efeito, eu estava sempre alerta e não conseguia ficar bêbada e entrar naquele torpor que anestesia a dor, mesmo que por pouco tempo. Talvez o álcool saísse do corpo junto com as lágrimas. Vai saber, não sou química e nunca gostei dessa matéria!
Olhei pra onde coloquei a lata de cerveja, ainda estava no mesmo lugar. Peguei e virei de uma vez. Estava horrível, quente e choca. Fui até a cozinha , peguei outra lata, peguei meu maço de cigarros e fui pro quintal. Se eu não conseguia dormir e nem anestesiar a dor, me permitiria chorar, chorar de verdade, e sentir tudo o que tinha perdido.
Eu tive chance de sair desse lugar, fiquei algum tempo morando num bairro nobre e tranquilo, tinha voltado a pouco mais de um ano. Se antes odiava esse bairro e a vida que levamos aqui, agora eu só quero ir embora. Sentada na escada , fumando e bebendo, me lembrei de quando percebi porque minha mãe sempre cuidou das nossas companhias e não nos permitia brincar na rua...