A humilhação não parou por aí. Bêbado, ele se forçou para cima de mim enquanto sussurrava o nome da noiva dele, apenas para me culpar na manhã seguinte. "O que você estava fazendo na minha cama? Seu comportamento é inapropriado."
Minha própria mãe ligou, não para me consolar, mas para me acusar de tentar seduzi-lo e arruinar sua vida perfeita.
Depois de uma vida inteira de devoção, eu era apenas um problema a ser resolvido, um corpo para ser confundido no escuro. O amor dele não era proteção; era uma jaula.
Então, pintei meu cabelo de loiro platinado, aceitei a oferta do meu tio distante para estudar design em São Paulo e desapareci sem dizer uma palavra. Desta vez, eu estava me salvando.
Capítulo 1
Ponto de Vista de Clara Matos:
Dezoito dias.
Foi o tempo que levou para a última centelha da minha esperança murchar e morrer. Dezoito dias depois de finalmente desistir de Heitor Lobo, meu meio-irmão, eu encarei meu reflexo no espelho do salão. Meu cabelo castanho natural, aquele que ele sempre elogiava, parecia pesado, como um manto de arrependimento. Pesado com cada palavra não dita, cada olhar roubado, cada sonho tolo que eu nutri por ele.
"Loiro platinado", eu disse à cabeleireira, minha voz surpreendentemente firme. "Aquele bem ousado, bem claro."
O cheiro de química encheu minhas narinas, uma pontada metálica e afiada que espelhava o gosto na minha boca. Era um corte físico, cada fio perdendo sua cor, tornando-se algo novo, algo que nunca tinha orbitado o mundo dele. Ele não me reconheceria. Ótimo.
Meus dedos, manchados de tinta de cabelo, procuraram desajeitadamente meu celular. Havia apenas um número que eu considerei. Meu tio distante, Geraldo. O bilionário da tecnologia em Florianópolis. O homem cujas ligações eu sempre desviava, cujos convites para deixar minha casa de infância e Heitor eu sempre recusei educada e firmemente.
Agora, minha recusa parecia ter acontecido em outra vida. Uma Clara diferente, uma Clara ingênua, fez aquelas escolhas. Esta nova Clara, desafiadora, tinha uma resposta diferente.
"Tio Geraldo", eu disse, as palavras um pouco roucas, "estou pronta. Vou aceitar sua oferta para a FAAP."
Houve uma batida de silêncio chocado do outro lado. Geraldo, geralmente tão composto, tão inabalável, pigarreou. "Clara? Você tem certeza? Você sempre foi tão... enraizada. Tão hesitante em deixar sua casa, sua vida aí. E o Heitor."
Uma risada oca escapou de mim. Soou frágil, como vidro quebrando. "Heitor? Ah, ele vai ficar noivo, tio. Com a Kaila Guedes. A influencer. Sabe, aquela que parece que saiu de uma revista e aperfeiçoou a arte da doçura passivo-agressiva."
Minha voz falhou um pouco no nome de Kaila. Eu rapidamente me recompus. "Está em todas as redes sociais. Planejamento extravagante da festa de noivado. Transmissões ao vivo, 'A Jornada de Kaila para Sra. Lobo'. É... um belo espetáculo."
Engoli em seco, o gosto amargo retornando. "Eu não posso mais orbitar a vida dele, tio. Não quando ele está construindo uma nova com outra pessoa."
A voz de Geraldo suavizou, perdendo a surpresa inicial. "Ah, Clara. Minha querida. Agora eu entendo. E você sabe que minha oferta está de pé, sempre. São Paulo vai te fazer bem. Um novo começo. Os melhores designers do mundo estão esperando por você na FAAP."
Suas palavras foram um bálsamo, um abraço caloroso através da linha telefônica. "Obrigada, tio. De verdade."
"Não precisa agradecer, querida. Apenas me prometa que vai ligar quando pousar. E eu vou arranjar tudo. Um lugar para ficar, um dinheiro para começar. Foque puramente nos seus estudos, entendido?"
"Entendido", sussurrei, o alívio me invadindo, uma esperança frágil se desdobrando em meu peito. A ligação terminou. Olhei para o meu reflexo novamente, os fios prateados captando as luzes do salão. Ainda era eu, mas diferente. Mais dura. Mais afiada.
Naquela noite, meu cabelo recém-descolorido parecia uma coroa de espinhos contra meu travesseiro. Eu não conseguia dormir. A decisão estava tomada, a passagem comprada. Mas uma parte de mim, a parte antiga e tola, ainda ansiava por algum tipo de encerramento. Algum reconhecimento.
Encontrei Heitor na sala de estar, esparramado no sofá, o celular apoiado enquanto Kaila, toda sorrisos deslumbrantes e cachos perfeitos, transmitia ao vivo suas decisões de decoração para a festa de noivado. Luzinhas de fada contra lustres de cristal. Rosa blush contra marfim. Cada detalhe um testamento à sua perfeição fabricada.
"Heitor", eu disse, minha voz mal um tremor. Ele não olhou para cima. "Heitor, preciso te dizer uma coisa."
Ele levantou uma mão, os olhos grudados na tela. "Só um segundo, Clara. A Kaila está tentando decidir sobre os arranjos de flores. Isso é crucial."
Kaila, na tela, deu uma risadinha. "Ah, Hê. Você realmente se importa com as peônias, ou está apenas fingindo para os meus adoráveis espectadores?"
"Claro que me importo, querida", Heitor arrulhou para o celular, um sorriso que eu não via direcionado a mim há anos enfeitando seus lábios. "Só o melhor para minha futura esposa."
Meu coração, que eu pensei ter murchado e morrido, deu um solavanco agudo e doloroso. Ele costumava me olhar daquele jeito. Ele costumava se importar com as minhas decisões.
Um fantasma de uma memória piscou: Heitor, anos atrás, quando eu era uma adolescente desengonçada, me entregando um caderno de desenho profissional. "Seu talento é desperdiçado em papel de fichário, Clara. Você precisa das ferramentas certas." Ele sorriu, um sorriso genuíno e encorajador que iluminou meu mundo. Ele se tornou minha musa, meu primeiro, meu único.
Cada design, cada esboço, cada peça de roupa que eu sonhava em criar, era inspirado por ele, para ele. No meu aniversário de dezoito anos, eu o presenteei com um portfólio, o ápice de anos de devoção secreta. Designs feitos para vesti-lo, para celebrá-lo.
A reação dele tinha sido como um soco no estômago. Uma explosão de raiva. "Isso é doentio, Clara! Eu sou seu irmão!" Ele rasgou as páginas, meus sonhos cuidadosamente renderizados, meu coração vulnerável, em confete.
Eu passei horas, dias, meticulosamente colando aqueles designs rasgados de volta, pedaço por pedaço irregular. Como um vaso quebrado, colado de forma imperfeita, mas ainda inteiro. Meu amor não morreu então. Nem mesmo quando ele trouxe Kaila para casa, um ano depois, e me disse: "Acostume-se a ter uma irmã, Clara."
Agora, observando-o completamente absorto no mundo digital de Kaila, seu aceno displicente com a mão, eu entendi. O vaso havia se estilhaçado além do reparo.
Minha aceitação na FAAP, a nova vida se estendendo diante de mim, parecia trivial, insignificante para ele. Assim como eu me tornei.
"Heitor", tentei novamente, minha voz mais forte agora, um fio de aço em meio à dor.
A voz de Kaila, doce e enjoativa, cortou o ar. "Ah, a Clara ainda está aí, Hê? Diga a ela para vir dar um oi para os meus seguidores! Eles adorariam ver sua irmãzinha!"
Heitor finalmente olhou para mim, um brilho de irritação em seus olhos. "O que foi, Clara? Não vê que estou ocupado?"
Suas palavras foram um tapa frio e duro. A finalidade de tudo aquilo desceu, pesada e sufocante. Dezesseis anos. Dezesseis anos amando-o, esperando por ele, orbitando cada movimento seu.
Tinha acabado.
A esperança precisava ser extinta. E só eu poderia fazer isso. Eu tinha que arrancar Heitor do meu coração. Não apenas sair fisicamente, mas mentalmente, emocionalmente. Ele costumava ser meu sol, minha lua, meu universo inteiro. Agora, ele era apenas uma estrela distante, desvanecendo. Mal uma mancha.
Meu amor por ele, aquele que sussurrava seu nome em meus sonhos, que alimentava minha arte, que o via como meu protetor, meu mentor, meu tudo – esse amor era um segredo que eu mantive trancado. Um segredo que apodreceu, tornando-se tóxico.
"Clara?" A voz de Heitor, impaciente, rompeu meus pensamentos. "Você vai dizer alguma coisa ou vai ficar aí parada?"
Ele ofereceu a Kaila um sorriso tenso, depois se virou de volta para o celular. "Desculpe, querida. Minha irmã pode ser um pouco... exagerada às vezes."
Uma irmã. Apenas uma irmã.
Lembrei-me da música que ele me apresentou, das conversas tarde da noite sobre meus sonhos, de sua mão guiando suavemente a minha enquanto eu desenhava. Foi ele quem me comprou minha primeira máquina de costura, me incentivou a me inscrever na FAAP, me disse que meus designs eram inovadores. Ele me construiu, apenas para me derrubar.
"Tudo o que eu já desenhei", eu queria gritar, "cada fio, cada paleta de cores, cada silhueta... foi para você."
Mas as palavras ficaram presas na minha garganta, engolidas por uma onda de náusea. Kaila ainda estava tagarelando sobre arranjos de mesa. Heitor ainda estava balançando a cabeça, distraído, fingindo se importar.
Ele nunca soube. Ele nunca saberia.
Meu coração parecia uma uva passa murcha, deixando uma dor que irradiava por todo o meu peito. Mas sob a dor, uma pequena brasa de outra coisa se acendeu. Raiva. Uma fúria fria e justa que solidificou minha resolução.
Eu me virei e fui embora, o assoalho rangendo sob meus pés, um eco silencioso do mundo em ruínas que eu estava deixando para trás. Eu não contaria a ele sobre a FAAP. Eu não contaria nada a ele. Ele não merecia conhecer a nova Clara.
Ele não me merecia mais. Nem a antiga eu, e certamente não a pessoa que eu estava me tornando.