Mais tarde naquela noite, minha melhor amiga foi atacada. Corri para o lado dela, apenas para ser recebida pela fúria do meu namorado. Ele me acusou de ser egoísta e de ter me atrasado, depois terminou comigo, me deixando sozinha e sangrando na neve depois que cuspi sangue por causa do meu câncer de pulmão terminal.
Ele não viu o sangue. Ele não sabia que eu estava morrendo. Ele apenas me viu como um inconveniente.
Meu mundo desmoronou. Eu estava escondendo minha doença para poupá-los da dor, apenas para descobrir que eles estavam construindo a felicidade deles sobre o meu sofrimento silencioso.
Recebi a ligação dele do hospital, não por preocupação comigo, mas porque ele tinha acabado de descobrir a verdade sobre o meu câncer. Ele chegou tarde demais.
Eu já estava em um avião para Curitiba, tendo enviado minha mensagem final: "Eu amo vocês dois. Sempre. Encontrem a felicidade de vocês. Eu vou ficar bem." Este foi meu último presente para eles - a liberdade deles, comprada com a minha vida.
Capítulo 1
Alícia Lacerda (Ponto de Vista)
A chuva batia contra a janela, um tamborilar implacável contra meu peito já dolorido. Tracei a condensação com um dedo trêmulo, cada respiração um esforço superficial e doloroso. Eu sabia que era meu câncer de pulmão, me consumindo, mas esta noite, o pavor gelado não tinha nada a ver com meu corpo falhando. Era sobre algo muito mais insidioso, algo que parecia uma traição à minha própria alma.
Eu os vi pela porta da cozinha, suas sombras dançando na parede, entrelaçadas e impossivelmente próximas. Caio, meu namorado de sete anos, e Camila, minha melhor amiga, minha irmã. A risada deles, suave e íntima, atravessou a tempestade lá fora e se alojou na minha garganta. Fechei os olhos com força, uma onda de náusea me invadindo, mas a imagem já estava gravada em minha mente. A mão de Caio, tão familiar, roçando a bochecha de Camila. Meu estômago se contraiu.
Meu aniversário de vinte e cinco anos. Um marco que eu não tinha certeza se alcançaria. E este era o meu presente.
Observei enquanto Camila se inclinava, sussurrando algo no ouvido de Caio. Ele sorriu, um sorriso genuíno e desprotegido que eu não via direcionado a mim há meses. Então, ela se afastou um pouco, e um brilho de metal captou a luz fraca da sala de estar. Era um colar. Uma corrente de prata delicada, com um pequeno pingente de onda perfeitamente esculpido. Meu coração despencou. Eu conhecia aquele colar.
Era metade do conjunto "mar e montanha" que eu havia escolhido para Caio semanas atrás. Ele me disse que adorou, o conceito de duas metades completando um todo, representando nosso vínculo duradouro. Nosso vínculo.
Lembrei-me do dia em que o comprei. Foi em uma pequena joalheria de bairro, escondida em uma rua lateral em Pinheiros. Passei horas me angustiando com o presente perfeito para nosso aniversário de sete anos - um presente que se tornou meu presente de aniversário, pois ele disse que nosso amor era eterno, transcendendo datas. Ele beijou minha testa então, seus olhos cheios de um calor que agora parecia uma memória distante. Ele prometeu que guardaria a metade da montanha, sempre perto do coração, assim como eu guardaria o mar. Ele disse que era nosso símbolo. Uma promessa silenciosa entre nós, nosso futuro entrelaçado.
Mas agora, o mar estava no pescoço de Camila. E a montanha? Eu sabia onde estaria.
Meu peito se apertou, uma dor aguda e lancinante que não era apenas o câncer. Era mais fria, mais profunda. Uma traição que cortava cada camada da minha paz cuidadosamente construída. Como eles puderam? Como ela pôde? Camila, que tinha sido minha rocha desde que éramos crianças em um orfanato, que jurou me proteger de tudo. Ela era minha defensora mais feroz, minha única família.
Uma leve vibração veio do meu bolso. Era o lembrete para o meu próximo tratamento de câncer, um toque suave do meu celular para enfrentar minha outra batalha, mais física. A ironia era um gosto amargo na minha boca. Eu estava morrendo, silenciosamente, e eles estavam se apaixonando, tão silenciosamente quanto.
Esperei no corredor escuro, encostada na parede fria, tentando regular minha respiração. Cada minuto parecia uma hora, cada segundo uma tortura lenta. Suas vozes sussurradas, o toque suave ocasional que eu vislumbrava, tornavam o ar denso com uma verdade não dita. Meu coração batia forte, um pássaro frenético preso em uma gaiola, ameaçando explodir através das minhas costelas.
Finalmente, a voz de Caio, um pouco mais alta desta vez. "Ela vai descer a qualquer minuto."
Camila riu, um som que costumava me trazer conforto, agora como vidro quebrado. "Não quer estragar a surpresa, quer?"
Uma surpresa, de fato.
Ouvi o farfalhar de roupas, o som de ajustes cuidadosos. Eles estavam se preparando, colocando suas máscaras. Minha vez de colocar a minha. Respirei fundo e trêmula, reprimindo a tosse que ameaçava me trair. Estampei um sorriso no rosto, uma coisa frágil e quebradiça que parecia estranha em meus lábios.
Entrei na luz, minha voz, surpreendentemente firme, cortando o silêncio fabricado. "Oi, pessoal. Qual é todo esse segredo?"
A cabeça de Camila se ergueu de repente, seus olhos arregalados, um lampejo de algo - culpa? medo? - cruzando seu rosto antes que ela o substituísse por um sorriso brilhante, quase frenético. Ela correu em minha direção, envolvendo-me em um abraço que pareceu rígido e artificial.
"Alícia! Feliz aniversário, querida! Estávamos apenas preparando tudo." Sua voz estava um pouco alta demais, um pouco entusiasmada demais. Ela se afastou, as mãos ainda segurando meus ombros, o olhar perscrutando meu rosto. "Você parece um pouco pálida. Está se sentindo bem?"
A preocupação em seus olhos parecia uma ferida nova. Era o mesmo olhar que ela me dera inúmeras vezes ao longo dos anos, uma preocupação genuína que sempre nascera de um lugar de lealdade feroz. Agora, estava manchado.
"Só um pouco cansada", murmurei, forçando meu sorriso a se alargar. Evitei o olhar de Caio. Eu não queria ver a confirmação ali. "Foi um dia longo."
Caio, que estava um passo atrás, hesitante, finalmente se adiantou. Ele estendeu a mão, depois parou, a mão pairando sem jeito antes de cair ao lado do corpo. Ele pigarreou. "É, você deveria se sentar. Nós temos... presentes."
Suas palavras, geralmente tão quentes e reconfortantes, pareciam frias e distantes. Lembrei-me de um tempo, não muito tempo atrás, em que ele teria me envolvido imediatamente em seus braços, sua preocupação tangível, seu toque um bálsamo. Agora, havia um abismo entre nós, largo e aterrorizante.
Os olhos de Camila saltaram de Caio para mim, depois para o chão. Um pequeno músculo se contraiu em sua mandíbula. Ela estava tentando agir normalmente, mas a tensão era um fio desencapado na sala.
Caio manteve distância, uma barreira sutil, mas inegável. Ele parecia encolher, os ombros curvados, o olhar evitando o meu. Era uma manifestação física do espaço emocional que ele já havia criado para si mesmo.
"Estou bem", menti, minha voz mais fina do que eu pretendia. Tentei injetar um pouco de leveza, fingir que tudo estava bem. "Vamos abrir! Mal posso esperar para ver a travessura que vocês dois aprontaram."
Travessura. A palavra tinha gosto de cinzas. Eu gostaria de poder acreditar que era apenas uma travessura. Eu gostaria de poder fechar os olhos e fazer o mundo desaparecer, fazer o câncer desaparecer, fazer a traição deles desaparecer. Mas o relógio estava correndo, não apenas para a minha vida, mas para esta frágil fachada.
"A Camila tem uma surpresa para você primeiro", disse Caio, sua voz monótona. Ele apontou vagamente para a sala de estar.
O rosto de Camila se iluminou, uma alegria forçada e teatral. "Ah, você vai adorar! É algo que eu queria fazer com você há séculos, uma pequena aventura só para nós." Seus olhos brilharam, um lampejo da antiga Camila, aquela que planejava esquemas grandiosos e bobos para levantar meu ânimo.
Caio interrompeu, um toque de algo afiado em sua voz. "Não se esqueça, eu também pensei muito nisso. É um esforço conjunto." Ele encontrou o olhar de Camila. Seus olhares se cruzaram por um segundo fugaz, uma conversa silenciosa passando entre eles, um segredo compartilhado.
Eu os observei, uma dor surda se espalhando pelo meu peito. Eles eram uma unidade. Uma equipe. E eu era a estranha, a forasteira em minha própria vida. Seus sorrisos fáceis, suas brincadeiras confortáveis, era como uma dança particular para a qual eu não fui convidada. Era o tipo de conexão que Caio e eu costumávamos ter, o tipo que Camila e eu sempre compartilhamos. Agora, pertencia a eles.
"Ok, ok, vocês dois", eu disse, forçando uma risada que soou oca até para meus próprios ouvidos. "Mostrem o caminho. Estou pronta para o que quer que vocês tenham." Apertei o batente da porta, meus nós dos dedos brancos. Minhas pernas pareciam de chumbo. Cada passo era um esforço. Eu só queria que esta noite acabasse. Eu só queria escapar, correr e me esconder da verdade que estava me sufocando.
Quando me virei para segui-los, um reflexo fugaz na janela escura chamou minha atenção. Caio alcançou a mão de Camila, seus dedos se entrelaçando com os dela. Ela não se afastou. Sua cabeça repousou por um momento em seu ombro, um gesto pequeno e íntimo que dizia muito. O pingente de onda em seu pescoço brilhou.
Minha respiração falhou. Eles estavam juntos. Verdadeiramente, profundamente, nauseantemente juntos. Não era apenas um ato físico que eu tinha visto. Era uma conexão emocional, um vínculo forjado em segredos e toques suaves. Meu coração se contraiu, um nó frio e duro no meu peito. Não havia mais espaço para mim em seu mundo entrelaçado. Eu já tinha partido.