O som áspero do telemóvel na minha mão ecoou no silêncio mortal do corredor do hospital. O Dr. Almeida acabara de sair do quarto do meu pai, o seu rosto, uma máscara de pesar profissional. As palavras "Lamento, Sra. Sofia. Fizemos tudo o que podíamos" não pareciam reais. O meu pai estava morto. Morto porque a transfusão de sangue de que ele desperatemente precisava – tipo O negativo, o sangue raro que corria nas veias do meu marido, Miguel – nunca chegou. E porquê? Miguel estava com a Clara. "Ela teve um ataque de pânico terrível, coitada. Viu uma aranha e desabou," ele disse. Uma aranha. O meu mundo inteiro ruiu e o motivo pelo qual Miguel não estava ao meu lado era uma aranha. A raiva gelada encheu-me o estômago. Ele não ligou, nenhuma mensagem. Quando o confrontei, defendeu-se, dizendo que "tinha de fazer uma escolha." No funeral, ele trouxe-a. Clara, a viúva frágil, lágrimas falsas, o braço no dele. O auge da afronta. Mais tarde, no velório, Miguel tentou justificar-se com uma história trágica. Mas o que ele me disse a seguir foi monstruoso: "O teu pai já era velho e estava doente. A morte dele era inevitável. A situação da Clara era mais urgente." O meu pai, reduzido a uma inconveniência na agenda de salvamento de Miguel e Clara. Todas as emoções evaporaram. Olhei para o homem com quem partilhei a minha vida e não senti nada. Apenas um vazio vasto e absoluto. "Sai da minha casa," disse eu, a minha voz firme. "O meu advogado vai contactar-te sobre o divórcio." É a minha vez de fazer uma escolha. A escolha de ser livre.