Está ligeiramente escuro, a pequena janela no cômodo não deixa a luz do dia se infiltrar nada além do que pequenos fios dourados. Mi-nha cabeça dói, os machucados no rosto e corpo em um latejar constan-te que me mantém acordado. O olho esquerdo está tão inchado a ponto de nem mesmo conseguir abrir enquanto o outro está parcialmente cer-rado. Observo os dois guardas parados na porta com suas mãos segu-rando armas pesadas, as roupas ainda manchadas com meu sangue.
O da direita funga, seu nariz quebrado após minha cabeça atin-gi-lo. Sorrio depois de cuspir aos seus pés, o que o faz grunhir. Não te-nho a melhor reputação em ser comportado quando me encurralam, que foi exatamente o que fizeram comigo. Pego desprevenido, não tive tempo para analisar uma rota de fuga ou mesmo defesa. Por um mo-mento de descuido dos meus homens, e também meu, acabamos sendo alvejados saindo de uma reunião importante.
Venho de uma família que já foi muito temida, mas meu pai fez certas escolhas que o transformaram em uma piada, assim como o resto de nós. Com muito custo, suor e noites sem dormir, estou tentando re-erguer nosso nome e formar alianças com outras famílias. A Famiglia Gallo, por exemplo, cederia uma parte do território para nossas máqui-nas de caça-níqueis ilegais se nós deixássemos passar parte de suas dro-gas. Era um acordo mais que conveniente para ambos os lados.
Porém, como minha família possui seus inimigos, os Gallo tam-bém possuem os deles. A relação entre as famílias é frágil, levando a conflitos constantes e muitas vezes sequestros seguidos de assassinatos. Fui pego no fogo cruzado, levado amordaçado, espancado e minha calma controlada está esvaindo por entre os dedos como areia a cada minuto que passa.
Remexo as mãos e sinto os pulsos arderem com a corda aperta-da. Meus pés descalços doem, as pernas formigando pela mesma posi-ção nas últimas horas. Ou seriam dias? Não consigo saber, ou mesmo lembrar. Barulhos começaram a ser ouvidos do lado de fora da porta. Um estouro estremece o chão e vozes alteradas se tornam gritos que se aproximam cada vez mais. Os guardas se entreolham ao empunhar as armas ao mesmo tempo em que a porta é aberta com um empurrão.
Só tempo de jogar o corpo para o lado, tombando com a cadeira, quando duas metralhadoras têm seus gatilhos puxados. O som dos tiros se mistura com os gritos e os cartuchos caindo no chão. Do lado de fora pode-se ouvir a confusão de um ataque e meu sangue ruge com a ex-pectativa de uma luta.
― Solte-o. - Um deles instrui, passando a alça da metralhadora no ombro e pescoço.
Minha cadeira é erguida e resmungo com a dor em meu ombro pela queda de mau jeito. A corda ao redor dos pulsos é afrouxada, meu corpo indo para frente e sendo segurado por uma palma quente no cen-tro do meu peito.
- Devagar, ragazzo .
Ergo o rosto e, pelo olho entrecerrado, reconheço o rosto sério do homem de cabelos grisalhos nas laterais.
― Costa... De Nobrega...
Tento sorrir, mas acho que mais se parece com uma careta dolo-rida quando o homem me puxa de pé. Solto um grunhido quando mi-nhas costelas latejam e apoio o peso do corpo contra o homem.
- Esses filhos da puta... Como vocês...?
- Tenho meus aliados. - Costa sorri brevemente antes de tor-nar a ficar sério. - Seu pai implorou por ajuda. Eu devia um favor a ele há muito tempo atrás. Agora, ande mais rápido.
― Acho... que quebrei uma perna. - Torço o rosto.
- Você já foi melhor.
Sorrio com a alfinetada. Teve uma vez que quebrei duas costelas e levei um tiro, mas ainda consegui derrubar três homens e fugir de carro. Talvez esteja realmente fora de forma.
― Porra, vocês demoraram ― murmuro.
― Sua forma de agradecimento é bastante questionável. - Costa gesticula para a porta. - Liderem nossa passagem, estamos saindo.
Com passos apressados, tento seguir Costa sem tropeçar. Porém, o homem anda rápido demais e meus pés insistem em se manter incon-sistentes. Saímos pelo corredor e chegamos à frente da enorme mansão abandonada convertida em prisão, o sol me atingindo o rosto com in-tensidade e me forçando a fechar o olho e gemer de dor.
― Aguente firme, Matteo.
Caminhamos com dificuldade, sangue escorrendo da minha tes-ta e dos vários ferimentos no corpo. O carro destrava e, com esforço, Costa abre a porta e me empurra para dentro. Sento sobre o banco do passageiro com uma careta, meu sangue misturado com sujeira deixa manchas sobre o couro branco. Viro o rosto para a janela e vejo os guardas armados, e fico tentado a erguer o dedo do meio.
Entretanto, minha cabeça lateja, meu corpo dói e a língua pare-ce inchada. A luz do sol parece piorar tudo. Encosto a cabeça no apoio do banco, a visão nadando, meu nome ecoa e parece longe demais. To-do o cansaço e machucados cobram seu preço e me levam ao esqueci-mento.
***
Três semanas depois.
O som do tiro ecoa pelo salão, o alvo preto e branco de uma si-lhueta balança com a força da bala o atravessando. Analiso o buraco feito dois dedos acima de onde deveria ser o coração e movo o alvo para mais longe. Não posso perder a prática de conseguir matar um filho da puta de uma distância segura. A raiva em ter sido pego de sur-presa ainda me assola. Os machucados e roxos ainda doem e me lem-bram a cada segundo de como fui fraco.
Meu olho esquerdo não está mais inchado, mas a coloração ver-de e amarela ao redor parece terrível. A córnea está vermelha e dolori-da. Segundo o médico de confiança de Costa, a pancada foi realmente forte. Tanto, que posso ter perda de visão em vinte e cinco por cento. Recarrego a arma com habilidade e miro novamente, praguejando com a visão um pouco embaçada. Grunho ao errar os dois tiros seguidos e trago o alvo para mais perto, analisando que, se fosse uma pessoa de verdade, teria atingido de raspão.
- Se girar um pouco o pulso, você consegue acertar entre os olhos.
Tiro a atenção do alvo e viro para encontrar a garota de tranças com laços vermelhos que me visita todos os dias pela manhã. Eva, a pequena valente e filha de Costa, com seus grandes olhos castanhos curiosos e impressionáveis.
- Entende de tiro, Piccolina ?
- Meu papà tem me ensinado há alguns meses. - Encolhe um ombro, seus olhos indo para o meu alvo. - Não é difícil depois que pega prática.
Assinto brevemente e apoio a arma de volta sobre a mesinha. As balas tilintam com o movimento e puxo um pano do bolso para limpar meus dedos sujos quando vejo que Eva me olha, a ponta do dedo indi-cador coçando a sobrancelha esquerda.
- Vai ficar uma cicatriz aí - diz baixinho.
Passo o polegar abaixo do corte no meu supercílio.
- Apenas mais uma lembrança dolorida.
Ela assente, cruzando as mãos nas costas.
- Você parece melhor, senhor Mazzari.
- Um pouco menos triturado. E pensei ter dito que poderia me chamar de Matteo.
A garota sorri timidamente, seus olhos me sondam de longe.
- Papà não acha adequado.
- Mas ensinar tiro para uma garotinha é?
Seu semblante fica sério, toda a tenacidade que cobre sua feição infantil mostra como seria uma mulher obstinada no futuro.
Perigosa.
- Não sou mais criança, tenho quase treze anos. Os meninos aprendem a manusear uma arma com a mesma idade. - Eva franze o cenho, seus braços cruzando. Seu vestido azul céu com laços brancos desmente sua fala. - Papà me prometeu uma faca Cold Steel de aniver-sário.
Sorrio de lado ao guardar a arma no cós da calça.
- O que está fazendo aqui, cara Eva?
- Não o achei em seu quarto, assim, imaginei que poderia estar aqui - resmunga, uma carranca torcendo suas feições novamente. - Papà quer vê-lo no jardim assim que possível para uma conversa antes do jantar. Ouvi dizer que mataram o Chefe da Famiglia Gallo depois que sequestraram você. Acham que pode ter sido seu pai e eles querem vingança. Senhor Mazzari, acha que vai ter que atirar em alguém? Vo-cê não vai morrer, não é?
Observo o rosto curioso da menina, minha mão passando pelas costelas já cicatrizadas. Se isso realmente tivesse acontecido, seria um grande problema para minha família. Franzo o cenho, meus olhos des-viando para os dedos de Eva retorcendo um laço de seu vestido quan-do me aproximo devagar.
- Não há nada que Matteo Mazzari não possa resolver. - Aperto seu ombro levemente. - E se tiver que atirar em alguém na cabeça, vou usar sua dica, Piccolina.
Eva sorri quando Jade aparece na porta.
- Aí está você! Incomodando o senhor Mazzari novamente?
- Ela veio me trazer um recado e um ótimo conselho. - Olho para Jade e coloco minha mão sobre os cabelos de Eva. - Ela é uma garota brilhante, inteligente e perspicaz. Costa teve sorte de tê-la e vo-cês deveriam apreciá-la melhor.
- Senhor Mazzari...
- Ela é a filha do Chefe da Famiglia De Nobrega. Trate-a como tal. - Viro para Eva e seguro seu queixo em um aperto suave. - Nun-ca abaixe sua cabeça. Para ninguém, Eva. Confie em seus instintos sempre e lute até o último suspiro. Me ouviu bem?
Eva assente rapidamente quando solto seu queixo e me viro pa-ra Jade com um aceno antes de sair do salão. Poucos passos depois ain-da posso ouvir suas vozes ecoando pelo corredor.
- Eva, o que faço com você?
- Sou filha de Costa De Nobrega, vou assumir seu lugar um dia. E também vou me casar com Matteo quando for adulta.
- Não diga bobagens. Agora vá para seu quarto e se lave para o jantar.
Balanço a cabeça. Com meus vinte e cinco anos e com um casa-mento marcado para o próximo mês, estou mais do que inacessível pa-ra uma criança de treze anos. Nossos caminhos não iriam se cruzar dessa maneira.
Puxo meu telefone e envio uma mensagem para meu homem de confiança e braço direito, guardando o aparelho sem esperar sua res-posta. O sol da tarde está se pondo no horizonte quando saio para o jardim, o laranja se misturando ao azul do mar. A brisa fresca sopra na varanda, a rede de franjas brancas balança, roçando o chão de piso vermelho. Árvores cheias agitam, pássaros cantando não muito longe.
Faz qualquer um se sentir em paz.
Entretanto, as últimas notícias ainda me perturbam.
- Aí está você. Como se sente hoje?
- Menos pior que ontem. - Seguro sua mão em um aperto ao me aproximar. Costa gesticula para que me sente e suspiro ao encostar no estofado claro da poltrona. - Fiquei sabendo sobre o Chefe da Fa-miglia Gallo.
Foi a vez de Costa suspirar.
- As notícias correm rápido. - Seus olhos escuros fitaram so-bre o ombro na direção da casa antes de voltar para mim. - A família está pedindo retaliação. O filho mais velho, Anthony, tomou o lugar do pai. Ele não está nem um pouco feliz.
- Não há motivos para meu pai ter feito isso. - Balancei a ca-beça, esfregando o queixo. - Não fui sequestrado pelos Gallo, assim como não existe poder na mão do meu pai para mandar matar alguém.
- Mas Anthony não sabe disso. E ele está agindo na dor. - Costa cruzou as mãos sobre as coxas. - Você sabe que pode ficar aqui o tempo que quiser, Matteo, mas existem tarefas a serem feitas.
Assenti, meus dentes rangendo até sentir a picada de dor no maxilar.
― Sei muito bem disso, Costa. Um dos motivos de já ter pedido minha carona para casa no caminho até aqui. Minha família precisa de mim.
Costa assentiu, observando o mar batendo contra as rochas.
― Você faz aquilo que é melhor. Minhas portas sempre estarão abertas para você e sua família.
Levanto, sentindo minhas costas doerem. Os cortes no rosto ainda estão avermelhados e se unirão às outras diversas cicatrizes pelo corpo em breve. Esfrego o pulso, os olhos presos no jardim florido da casa que fiquei nas últimas semanas para me recuperar.
Vejo Cristian surgir pela trilha de cascalho que levava à saída da grande casa De Nobrega e estendo a mão para Costa.
― Sou grato por me resgatar e por me hospedar em sua casa. ― Apertamos as mãos, meus dedos mantendo os de Costa com força. ― Eu, Matteo Mazzari, como Chefe da minha Famiglia, a minha palavra de honra de que pagarei pela ajuda. Quando precisar, seja onde for, estarei lá para ajudá-lo. Mesmo que tenha as mãos cheias de sangue, ou que custe minha vida.
Costa apertou minha mão entre as suas e assentiu seriamente.
― Tenho sua palavra, rapaz.
Sem mais o que dizer, viro as costas e saio da grande casa com aquela promessa caindo sobre os ombros. Virando a curva, Eva surge de trás da pilastra, seus olhos tristes ao acenar. Parto, sem imaginar que anos mais tarde estes mesmos olhos me olhariam com súplica.
Minha palavra seria cobrada.
E pagaria com minha alma se preciso fosse.