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Histórico

Capítulo 3 Trauma N˚1 - A Rejeição

Palavras: 4286    |    Lançado em: 06/11/2021

ferida psíquica". A primeira definição de Freud para trauma foi de "uma situação real que possui potencial traumatizante". Mais tarde Freud voltou ao assunto definindo "o

o menos, um trauma ao longo da vida. A ciência e a psicologia ainda não entendem a razão de 20% dessas pessoas não conseguem superá-los. De ordem física ou emocional, um trauma marca e modifica a história de uma pessoa. Tra

um trabalho que dói para quem não se engana. Ali está o meu prim

o que me incomodava porque, desde pequeno, sempre sonhei alto. Fazer parte do grupo dos bonzinhos me deixava para baixo, não cabia em mim. Isso transbordava em forma de agressividade e re

. Dos playboys da Atlântica, aos meninos do Chapéu Mangueira. Eu era o amigo do Gabriel. Pronto, estava feliz pra caralho por estar com um garoto que era mais inteligente e sagaz do que eu. Eu aprendia sempre com ele. Imagino que a gente devia ter uns 10, 11 anos. Não tenho certeza. Pode ser mais, pode ser menos, mas o que importa é que já naquele idade o Gabriel tinha desenvoltura com as meninas, a sagacidade dele atraia inconscientemente o sexo oposto. Eu estava ali, aprendendo com ele. Aquilo era demais. Entre os bonzinhos nem se falava de meninas e muito menos com meninas. E eu queria muito, mas não fazia idéia de como. Com o Gabriel aprendi que essa atração é uma coisa natural, ela vem da sua imposição no convívio social. Depois da primeira a

o. O lance era achar o balanço da "bala"perfeita. Depois era só dobrar ao meio mais uma vez, pegar um elástico, colocá-lo no dedão e no indicador, encaixava o papel dobrado no elástico, puxa o elástico pelo papel para a direção do seu corpo e ai é só soltar que o tiro sai. Se acertar, dói. Minha lembrança é bem clara desse dia porque em dado momento fiz a bala perfeita. Mirei no Guilherme, atirei. Ele se escondeu atrás da mesa de ping-pong que já fora deitada para servir de trincheira. O teco acertou a mesa e fez um barulho enorme. "Caraaaaaaaaacaaaaaaaa. Moh tirão, maluco", gritou o Guilherme. A brincadeira parou na hora porque eles queriam ver como eu tinha feito aquele teco tão potente. Nem eu sei. Só dobrei o papel como sempre fazia, mas aquele ficou realmente na medida ce

e não podia comigo, tinha que mostrar quem era o superior ali. Gabriel na hora se ligou na dose de veneno que eu havia destilado querendo colocar mais para baixo alguém que já sofria suficientemente na vida por suas limitações durante uma brincadeira inocente entre crianças. Não houve perdão. Discutimos. Ele falou para eu pedir desculpas, devo ter mandado ele ir à merda, ou algo semelhante dentro de um vocabulário infantil. Fui embora cheio de razão. Chegando em casa me toquei que tinha esquecido meu relógio na casa da avó do Gabriel. Fui na hora buscar porque no fundo sabia que iria demorar muito para voltar. Chegando lá a avó do Gabriel chamou eu e ele para conversarmos. Ela tinha ouvido a briga, queria entender o que tinha acontecido e tentar fazer com que nos acertássemos. Expliquei que só estava ali para pegar meu relógio mesmo. Ela falou que entendia, que era normal amigos brigarem, mas queria ter certeza que iriamos ficar bem com o tempo. "Com certeza", eu disse. "Não", disse Gabriel. No fundo eu sabia que era só eu pedir desculpas para ele e para o menino que tudo ficaria bem. Foi isso que tinha acontecido com o Guilherme. Ele fez algo que o Gabriel não gostou

nem ligou, não quis assumir. Ela só tinha o Gabriel na vida. A pavor de o Gabriel ter alguma coisa era tão grande que quando ele ia tomar sorvete ele lambia antes para ficar menos gelado e ele não ficar gripado. Gabriel vivia doente. Hoje entendo que essa superproteção fez com que o corpo dele nunca tivesse desenvolvido anticorpos suficientes para protege-lo de verdade. Até hoje não sei ao certo o que de fato aconteceu. Ele teve uma gripe forte que evoluiu para um pneumonia e foi internado. Estava melhorando e voltou para casa. Morreu durante uma tarde na casa dos avós. Uma amiga da minha irmã morava no prédio colado ao dos avós do Gabriel e contou a ela a gritaria e todo desespero da família do Gabriel que ela escutou naquela tarde. Meu melhor amigo, meu espelho. O cara que fez eu me sentir bem comigo mesmo pela primeira vez na vida tinha ido embora de vez e nunca mais iria voltar. Gabriel morreu brigado comigo, sentindo raiva de mim. Tudo isso porque fui orgulhoso de não ter pedido desculpas na hora que eu sabia que tinha errado. Desculpa. É uma palavra só. Mudaria tudo. Não que ele estivesse vivo, ele iria morrer de qualquer jeito. Mas ele iria em paz comigo e eu teria paz com o passar do tempo, quando entendesse melhor a vida. Ess

uele momento lembro claramente, como se fosse ontem. Era um início de noite meio chuvoso, um pouco de frio no Rio. Lembro exatamente o local da areia onde a reunião aconteceu, sei exatamente aonde estava sentado e meu ângulo de visão para o treinador. Toda vez que passo por aquele local essa imagem me vem na cabeça. Bem mais velho, durante muito tempo corria diariamente na areia fofa. Passava por esse local obrigatoriamente. Nunca evitei. Não teve uma vez que não olhava para lá, via aquele refletor de luz que ilumina a praia a noite e não lembrasse daquele momento. "Toda vez que olho a foto desse menino eu choro muito. Ele era muito especial para todo mundo aqui no bairro. Por isso quero vocês respeitem esse momento. Joguem sério, mas respeitem porque não é um amistoso como os outros. Esse é diferente. Vocês estarão homenageando alguém muito especial". O final do recado, com a voz embargada, teve os olhos do Galo direcionados nos meus com a luz clara do refletor por trás da sua cabeça, criando uma imagem quase que angelical. Ele então anunciou que a partida seria em campo de Beach soccer, apenas quatro na linha e um no gol. Por isso os convocados seriam reduzidos, 10 entre titulares e reservas, e eu estava entre eles, sempre estava. No próximo treino faríamos um coletivo para arrumar o time que iniciaria o jogo. Eu não era titular do time de beach soccer, mas era o primeiro reserva. Na sexta o Léozinh

que eu não estava bem, mas teve uma hora ele me chamou. No caminho até o técnico, olho lá para o quiosque para ver se a família dele está me vendo. Eles estão. Todos os olhos estão em mim. Naquele momento tenho um pensamento bem egoísta. "Cara, ninguém nunca chegou para mim e me perguntou como eu estava. Nunca perguntaram se eu preciso falar sobre aquilo. Ninguém. Nunca. Caraca, eu sou uma criança de 12 anos (eu acho). Não faço idéia se estou agindo certo ou errado. Eu to vivo e ninguém se preocupa comigo. Quer saber? Foda-se todo mundo". Galo me passa algumas instruções que nem escuto porque estou remoendo meu pensamento. Me lembro do que falo para ele antes de entrar. "Pode deixar Galo, vou buscar o resultado para a gente". Ele faz uma cara de quem estranha isso. Eu jogava mais na defesa, minha função não era de fazer gols. Ele pode ter até pedido para eu marcar alguém e tal, mas eu nem dou ouvidos. Pelas minhas contas estamos dois gols atrás quando entro. No meu primeiro lance o goleiro do time deles faz um lançamento, me antecipo ao jogador adversário matando a bola no peito. Com a cabeça levantada busco a jogada. Vejo o Gibion, nosso melhor jogador, indicando com o dedo pedindo o passe na frente, entre dois adversários, para ele entrar em velocidade com a bola na cara do gol. Assim que ela bate na areia dou um tapa de três dedos. Ela sai

pa era toda minha. A raiva que eu sentia não era do Gabriel, ou da família dele que nunca falou comigo, ou da minha própria família que nunca me perguntou como eu estava lidando com aquilo. A raiva que sentia era de mim mesmo. Me abracei nesse sentimento como uma autocondenação e me fechei para o mundo fingindo estar tudo bem. Fui eu quem causei o meu próprio sofrimento por causa de um orgulho idiota. Achava que agora eu tinha que pagar esse preço sozinho. Nunca foi fácil falar do Gabriel. Acho

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