Baixar App hot
Início / Fantasia / O Diário de Hass
O Diário de Hass

O Diário de Hass

5.0
1 Capítulo
3.9K Leituras
Ler agora

Sinopse

Índice

Com apenas sete anos, Hass é assombrado por experiências sobrenaturais e pesadelos vívidos que aterrorizam suas noites. Tudo começou depois que um incidente em sua escola despertou nele uma fúria incomum e, incapaz de controlar esse novo, desconhecido e duvidoso sentimento, atraiu para si uma atenção indesejada. Filho único e criado por mãe solteira, foi obrigado a amadurecer depressa por não tê-la sempre por perto. Sentado sempre no fundo da sala e carregando consigo um livro para onde quer que fosse, buscava neles, talvez, um jeito de preencher uma tristeza nostálgica que o perseguia e que estava impressa em seus olhos. A sanidade do garoto definha enquanto a dor finca nele suas garras, rasgando-o cada vez mais fundo, e a sensação de ter alguém à espreita no canto mais escuro do seu quarto não é mais uma suspeita. Dúvidas, medo, desespero e incertezas compõem seus dias até esbarrar com um senhor chamado Bartolomeu, o responsável por oferecer a ele algumas respostas e por fazê-lo conhecer uma nova realidade. Pouco a pouco uma nova pintura se mostra diante do garoto e as pessoas que o cercam começam a assumir novos papéis. O que realmente estava acontecendo com ele? Quem era Hass? Ou melhor, o que era ele? Benção ou maldição?

Capítulo 1 1

Tentei evitar, mas a minha maldição é mais forte do que pude imaginar. Meu carma, meu desespero, o medo de me tornar um monstro me perseguem a cada dia.

A morte parece ter me virado as costas. Permanecer vivo se tornou um fardo pesado demais para carregar.

Aceitei uma sugestão amiga e resolvi escrever nesse diário todas as coisas que me atormentam desde a infância.

O primeiro episódio, no mínimo estranho, ocorreu quando estava com sete anos. Fui uma criança incomum. Sempre preferi a quietude e a solidão do meu quarto, a imersão nos meus livros de história, ficção e terror, a sair para brincar. Havia em mim uma resistência em me enturmar com os outros garotos e eu nem sei explicar o porquê, talvez eu os achasse muito “crianças”.

Mesmo não gostando de me socializar, tive que aprender a me virar desde cedo. Minha mãe trabalhava em dois turnos no hospital da cidade, e eu não podia recorrer sempre a ela para me livrar de problemas. Amadurecer muito novo. Foi o que me restou.

Já pode imaginar que isso não foi uma tarefa fácil, não é? Acertou em cheio!

Uma criança de sete anos, curiosa e com meu nível de sagacidade, deixava os adultos desconfortáveis, ainda mais quando questionados a respeito de suas condutas. Por isso, eu aprendi a ler o comportamento humano desde cedo.

Evitar algumas perguntas, pedir desculpas mesmo quando se está certo, dizer o que as pessoas queriam ouvir, virei expert nisso! Fazia tudo que podia para não criar problemas. Não queria sobrecarregar ainda mais o peso que minha mãe carregava em seus ombros cansados.

Às vezes, na hora do recreio na escola, sentado num banquinho distante dos brinquedos, entre uma mordida e outra no pão com carne que só minha mãe conseguia fazer, observava os alunos correndo, gritando, rindo, todos felizes. Cada um com seu grupo, menos eu. Não me encaixava.

Nunca soube explicar o motivo, mas desde que me entendo por gente, havia em mim o sentimento de não pertencimento. Talvez tenha sido meu amadurecimento precoce, que me fazia ver tudo aquilo como uma tremenda perda de tempo.

Havia em mim, uma tristeza nostálgica que vinha à tona quase todo final de tarde, junto da sensação de estar muito longe de casa, do meu verdadeiro lar...

Eu estava desconectado daquela realidade monótona.

Nessa época eu não tinha muito critério com a minha aparência, o cabelo castanho escuro com uma pequena mancha branca na franja, vivia bagunçado. As roupas eu escolhia pelo conforto, mesmo que fossem um ou dois números maiores do que o “adequado”. Sempre gostei de cores escuras e isso refletia no que eu vestia, o que contrastava bastante com a pele clara, ou melhor, pálida.

Versadi, a cidade onde eu nasci, era extraordinariamente quente e úmida. O calor não dava uma trégua nem durante a noite. Dormir com a janela aberta só era uma opção se quisesse servir de jantar para os mosquitos. A solução na maior parte do ano era um ventilador surrado posicionado a um palmo do meu rosto. O paradoxo era que mesmo que a temperatura lá fora atingisse cinquenta graus, os meus banhos eram sempre escaldantes. A resistência do nosso chuveiro sobrevivia no máximo dois meses no calor e só um mês no inverno. Vivia esperando pelas épocas frias, para dormir tranquilo, sem acordar ensopado de suor toda manhã. Só assim para desengavetar meus cobertores, ainda que fosse por alguns dias, mas o frio demorava a chegar e logo ia embora, sem deixar nem uma brisa fresca como recordação.

A timidez me vestiu bem, como um tênis confortável que não aperta e nem causa calos. Estar quieto no meu canto, evitou muitos problemas. Por isso, não gostava de me expor. Erguer a mão durante as aulas para tirar dúvidas, estava fora de questão. Sempre desviava o olhar da professora e fingia estar anotando algo quando ela insistia em fazer uma pergunta para a turma esperando algum dos alunos responder. Para completar, eu não conseguia me focar nas explicações das matérias, eram tediosas. Só de ver os professores passeando de um lado para o outro, lendo o livro aberto em suas mãos, minha mente divagava. Isso fez com que eu conquistasse a antipatia e a indiferença de alguns professores imediatamente. Eles não se conformavam com a minha atuação em sala. Na verdade, com a ausência dela.

Nessa época, eu era o típico aluno do fundão. Não fazia anotações: no meu caderno tinha apenas umas dez páginas rabiscadas e nenhuma delas era sobre o conteúdo das aulas, nem me recordo de ter assinado meu nome nele. Meu olhar descansava com frequência pelo vidro da janela à minha esquerda que dava de frente para a rua. Minha mente eventualmente dava o ar da graça em sala de aula, pois seu hábitat natural era o mundo da lua e milagrosamente eu conseguia tirar boas notas. Bom, não eram as melhores, mas o suficiente para passar de ano.

A minha imaginação funciona como uma âncora. Ela me puxa com tanta intensidade, que me proporciona momentos de tanta imersão que eu não sei distinguir entre o real e o irreal. Isso tem seu lado bom e seu lado ruim. Ficar no escuro, sozinho, por exemplo, era horrível. As sombras sempre se mexiam ou tinham olhos ou os dois.

Nas aulas, com o olhar fixo na janela, eu percorria dimensões dentro da minha própria mente.

Numa dessas dimensões existia a floresta negra de Oratu, onde as árvores eram negras, com poucas folhas. E sempre, independentemente do momento em que eu pensasse nela, sempre era uma noite fria. Este, sem dúvidas, era o meu lugar favorito. Nela eu me sentia vivo e conectado a algo muito poderoso.

Entre suas árvores negras, eu corria tão rápido quanto um lobo, desviando-me dos galhos, saltando os troncos caídos no chão. Sentia a selvageria em meu sangue fazendo todo o meu corpo reagir, os batimentos acelerados, os picos de adrenalina e as nuances de temperatura no vento. Era um sentimento de poder que me deixava em êxtase. Eu queria sempre mais.

Eu e aquela floresta éramos um só.

Na clareira, no centro de Oratu, havia um lago de águas escuras, que refletia as poucas nuvens, as estrelas e a imensa lua cheia. Era um espelho d’água que fazia o céu parecer tão próximo, que num esticar de braço poderia tocá-lo. Era ali aonde eu ia quando queria relaxar. O cheiro daquela parte específica da floresta me trazia a paz que nunca consegui encontrar em outro lugar.

Numa dessas viagens a Oratu, embebido pela sensação de poder, perdi completamente a noção do tempo ao perseguir um animal. Ele era rápido e astuto, um coelho ou uma lebre, talvez... não conseguia vê-lo perfeitamente. Mas seu cheiro deixava um rastro que se destacava em meio a escuridão quase que absoluta da floresta. A minha concentração era plena, nada atrapalhava meu foco. Quando estava conseguindo alcançá-lo, fui despertado pelos gritos de minha professora.

— Hass! Acorda, Hass! — esbravejava, enquanto todos da sala olhavam para mim, amedrontados pelo descontrole dela.

— Oi... — quase inaudível, com tanta vergonha que mal erguia os olhos.

— Venha até aqui! — gritou, enquanto sacava uma palmatória de dentro da gaveta da mesa.

Na escola, os professores tinham a liberdade, com a anuência dos pais, para disciplinar os alunos considerados malcriados com uma palmatória de madeira, que parecia uma colher de pau redonda com uns furinhos na concha.

Mesmo a contragosto, eu me obriguei a levantar e caminhei até sua mesa, vagarosamente, enquanto notava todos os olhares em mim. Minhas orelhas queimavam.

— Estenda sua mão! — gritou com uma voz estridente.

Geralmente eu não saio do sério tão rápido, mas esses gritos eram tão desnecessários que me irritavam profundamente.

— Hass, estenda a sua mão agora! — gritava ainda mais alto.

— Não! — respondi irritado. Ela e todos os alunos se espantaram, afinal de contas, ninguém enfrentava a professora.

— Como é mocinho? Estenda a sua mão agora! — berrou. A veia saliente em seu pescoço, dava a impressão que se romperia a qualquer instante.

— Não fui malcriado! — respondi com um tom de voz alterado, todo meu autocontrole havia ido embora. Uma pequena irritação que estava dentro de mim tomou corpo. Com a respiração curta e a testa franzida eu a encarava profundamente, como um animal prestes a atacar.

A professora se revoltou ainda mais quando percebeu que todos prestavam atenção nela. Aquela atitude vinda de uma criança era uma afronta à sua autoridade máxima em sala de aula. Ela precisava fazer algo a respeito.

Numa última ação, com intuito de firmar sua autoridade, ela puxou meu braço e tentou me bater com a palmatória.

Nesse instante, a minha respiração mudou, estava mais rápida e intensa. Eu podia escutar meus batimentos, como se meu coração pulsasse dentro da minha cabeça. O tempo desacelerou e tudo ficou devagar. Isso ativou um gatilho em mim.

A selvageria tomou conta do meu corpo e pude me sentir conectado a algo poderoso, assim como em Oratu. A sensação era a mesma.

A irritação se transformou em raiva; a raiva se tornou ódio profundo e me consumiu imediatamente. O braço dela avançava em minha direção, mas, antes que pudesse me atingir com a palmatória, o agarrei no ar. Perdi a completa noção do que estava fazendo. Meus dentes estavam cerrados com tanta pressão, que meu ouvido zumbia.

O sentimento de poder emergiu. O meu corpo inteiro se arrepiava e pulsava num ritmo frenético. Cada pequena parte minha vibrava, excitada, envolvida por uma espécie de aura que essa sensação de poder trazia. A minha mente também havia sido afetada, estava rápida, imaculada, com a certeza de que pudera fazer qualquer coisa. Com pouco esforço, apertei o braço da professora como se fosse um pequeno graveto. Seus dedos se encurvaram em direção a palma da mão à medida em que eu os apertava. Minhas unhas se afundaram em sua carne macia até chegar aos ossos. Não havia resistência.

A palmatória escapou de sua mão, caiu e um enorme barulho ecoou pela sala. Em seguida, ouvi o som agudo do arrastar de cadeiras. Os alunos, assustados com o que viam, se levantaram rapidamente, empurrando-as de qualquer maneira.

Por mais que a professora se esforçasse, não conseguia se soltar. O terror era visível em seus olhos arregalados e no rosto pálido como giz.

Meu olhar estava tão focado nela, que os outros alunos desapareceram do meu campo visual.

— Solta, está me machucando! — implorou com um tom de voz baixo e choroso, quase sussurrando, expressava dor. Seus olhos marejavam.

Segurei o braço dela por mais alguns segundos, enquanto a encarava profundamente, como se pudesse olhar as fossas de sua alma.

— Eu… não fui… malcriado! — a minha voz havia mudado, estava pesada, era difícil falar. Pareciam duas pessoas falando através de mim.

Não suportando mais a dor, ela caiu de joelhos na minha frente. As lágrimas escorriam pelo canto de seus olhos, que agora piscavam rapidamente.

Quando decidi soltá-la, em seu braço havia uma marca tão negra e profunda que era fácil ver o desnível da pele.

Aos poucos, a sensação de selvageria e poder foram recuando. A minha respiração normalizou e estava leve, assim como todo o meu corpo. Ao olhar para o lado, percebi que meus colegas estavam todos de pé me encarando.

Ignorei todos, fui em direção a minha cadeira e me sentei. Por fora agindo como se nada tivesse acontecido, mas por dentro a vergonha começava a me corroer quase que imediatamente.

Foi sem dúvida um erro da minha parte ter chegado a esse ponto. Talvez fosse melhor ter deixado que ela me disciplinasse e nada disso teria acontecido, mas cobrar esse discernimento de uma criança é muito complicado.

Apesar de reconhecer que foi uma conduta equivocada, não existia remorso, arrependimento ou culpa pelo ocorrido, eu só estava envergonhado de ter sido exposto a essa situação.

A curiosidade sobre o que acabara de acontecer me perturbava. Uma tempestade de perguntas surgiu na minha mente. Não sabia qual tentar responder primeiro.

A professora tentou se recompor, fungando ela saiu da sala e foi em direção ao corredor. Ela se esforçou para disfarçar, mas as lágrimas escureceram o tom azul de sua camisa, haviam entregado a sua dor.

Poucos minutos depois, Augusto, o zelador, aparece na porta da sala, olhou para mim, ergueu a mão e fez um sinal para que eu o acompanhasse.

— Hass, o diretor pediu para eu te buscar. Pelo tom de voz dele, você está bem encrencado! O que foi que aconteceu? — perguntou seu Augusto me encarando.

Mesmo ele sendo uma das poucas pessoas que eu conversava, não o respondi, apenas continuei caminhando. Não tinha como explicar para ele o que tinha acontecido, afinal nem eu mesmo sabia.

Até chegar à diretoria, as únicas coisas que pensava era como eu pude sair do sério daquela maneira e porque aquela explosão de ódio me consumiu a ponto de me fazer perder o controle.

Não é errado ir de encontro a alguém que age com autoritarismo, tinha que reagir, não podia simplesmente deixá-la me bater. Mas me expor daquele jeito... Será que essa foi a maneira certa de resolver?

Augusto me olhava de relance esperando alguma resposta, mas minha mente estava focada em outras coisas.

Não me lembrava daquele corredor ser tão grande. Parecia que estávamos caminhando a horas e não chegávamos. O silêncio só era rompido pelo som dos nossos passos.

Na diretoria, com o braço enfaixado, a professora estava de pé ao lado da mesa do diretor. Em sua mão direita havia um pequeno lenço branco, que usava para limpar seus olhos inchados de tanto chorar.

Antes que alguém pudesse falar, eu me antecipei.

— Professora, me desculpe. — apesar de não sentir culpa, acreditei que seria o melhor a se fazer naquele momento, dado a todos os olhares julgadores sobre mim.

— Hass, isso foi muito grave! Você está conosco desde os quatro anos e nunca tivemos problemas com você. O que houve? — questionou o diretor Marcos, com sua voz grave e inconfundível, me encarando com intensidade sobre seus grandes óculos quadrados.

— A professora. Ah… Eh… Não importa. — disse constrangido. A vergonha me consumia. Daria meu braço esquerdo para que aquela situação se resolvesse o quanto antes.

— Você agrediu a professora? — perguntou com um tom de voz muito sério.

— Nã… Sim. — hesitei em responder. Na verdade, eu não havia agredido ela, não na minha cabeça de sete anos de idade.

— Hass, terei de suspendê-lo por cinco dias. Vou ligar agora para sua mãe vir te buscar! — a expressão em seu rosto demonstrava estar profundamente desapontado.

— Tudo bem. — me sentia envergonhado pela situação, mas não deixava de encará-lo.

— Hass, vai pegar suas coisas e volte o mais rápido possível! — disse, enquanto discava os números no telefone para o meu desespero. Trazer minha mãe para escola era, pra mim, meu pior pesadelo. Não por ela ser uma má pessoa, mas eu me sentia péssimo de estar sobrecarregando ainda mais o fardo que carregava.

Sem pestanejar, saí depressa e fui buscar a mochila.

No momento em que abri a porta da sala, os alunos, alguns ainda de pé, me encaravam congelados. Caminhei até minha cadeira, que ficava no final da quinta fila.

Todos os olhares estavam voltados para mim, ninguém dizia uma palavra, mas bastou que eu passasse pela porta para poder ouvir os murmurinhos:

— Minha mãe tinha razão em não querer que eu andasse com ele. — dizia um.

— Ele sempre foi esquisito. Talvez seja doido. — disse outro aluno.

Estas frases ecoavam na minha cabeça, no caminho de volta.

Será que eles tinham razão? Talvez eu seja louco. Isso explicaria muita coisa.

Na sala da diretoria, fiquei de pé com a mochila nas costas esperando. Andava devagar de um lado para o outro enquanto o diretor assinava alguns papéis.

— Dá para você parar num canto? — perguntou o diretor, enquanto me olhava por cima dos óculos.

Acenei com a cabeça e encostei na janela, onde era possível ver a entrada da escola. Senti que fiquei uma eternidade esperando até que minha mãe surgisse no portão de entrada da escola, mas o relógio pendurado acima da mesa do diretor marcava que eu estava ali há pouco mais do que 45 minutos.

— Bom dia, diretor Marcos! O que… houve? — ela disse pausadamente enquanto percorria os olhos pelo braço da professora.

— Olá Lúcia, bom dia! Por favor, sente-se, precisamos conversar! — respondeu ele. Aquela expressão séria, não lhe saía do rosto.

O diretor começou a explicar o que havia acontecido, mas assim, que foi mencionada a palavra agressão, ela se virou na minha direção.

— Você agrediu a professora? — o olhar incrédulo lhe estampou o rosto.

Nesse momento, a minha cabeça despencou em direção ao chão, parecia pesar mais do que todo o meu corpo. Não conseguia encará-la. Nunca senti tanta vergonha em toda a minha vida. Nem mesmo há duas semanas, quando ela entrou no quarto sem avisar e eu estava com a bunda de fora procurando uma cueca na gaveta do guarda roupa.

— Olhe para mim! Você agrediu a professora? — dessa vez esbravejou. Seu rosto estava escarlate.

— Não me agrediu. Ele segurou meu braço um pouco mais forte e machucou… um pouco. — para minha surpresa, a professora, ainda fungando, interveio por mim.

Isso fez com que os ânimos se acalmassem por um instante. Mesmo se esforçando muito para disfarçar, a testa franzida entregava o quão furiosa minha mãe estava.

— Posso ver seu braço? — ela caminhou em direção à professora com um sorriso forçado no rosto.

— Pode sim, mas tenha cuidado, ainda dói um pouco. — respondeu a professora.

Assim que ela desenfaixou, notei que a marca negra estava maior, cobrindo o antebraço inteiro. Os olhos da minha mãe se arregalaram, quase saltando das órbitas, mas tentou disfarçar logo em seguida, trocando a expressão de espanto do rosto por uma mais apática.

De dentro da bolsa, minha mãe puxou um frasco azul... talvez verde... não sei dizer que cor era aquela, ele possuía um leve brilho oscilante.

— Tome, fará efeito em poucos minutos e a dor vai sumir. — disse ela entregando para a professora um único comprimido, que o engoliu sem hesitar.

Minha mãe veio na minha direção e me entregou a bolsa dela.

— Segure! — disse ela com um olhar raivoso.

Com a bolsa apoiada no meu colo, ela abriu e vasculhava em meio à bagunça algo muito específico.

Era como uma mistura de uma farmácia, com maquiagens, perfumes, cremes, chaves, um livreto, balas e um chocolate, que vi de relance lá dentro. Talvez até pedisse se a situação fosse outra, mas não quis forçar a barra. Tinha tanto treco dentro da bolsa que minha mãe demorou uns dois ou três minutos para encontrar o que procurava: uma pequena bisnaga branca que parecia um creme para as mãos.

Ela se voltou para a professora.

— Esse creme precisa ser aquecido antes de aplicar para fazer o efeito desejado! — disse ela, tornando a exibir um sorriso forçado no rosto enquanto espremia o creme em suas próprias mãos e o esfregava.

Minha mãe assoprou ar quente para dentro de suas mãos e o mesmo brilho que estava no frasco de remédio, surgiu entre os dedos dela.

— O que... — sussurrei enquanto forçava as vistas para tentar ver melhor o que estava acontecendo.

Apesar de estarmos olhando para a mesma direção, o diretor e a professora pareciam não ver, o que, aparentemente, apenas eu estava vendo.

Assim que minha mãe percebeu que eu notei, tentou em vão bloquear a minha visão colocando o ombro direito na frente. Era um pouco tarde para fazer aquilo, já havia visto e despertou ainda mais a minha curiosidade.

No caminho de volta, ouvi um sermão para uma vida inteira. “Você não tem juízo? O que pensou que estava fazendo? Será que eu não posso mais confiar em você, Hass? Você sabe o quanto eu trabalho...”. Ela estava cuspindo fogo. A minha sorte é que ela não era um dragão ou eu já teria sido incinerado. Eu permaneci calado até entrarmos em casa.

Quando a porta se fechou.

— O que a senhora fez com o braço da professora? —questionei sem rodeios.

— Do que está falando? Quem a machucou foi você! — retrucou se afastando de mim, indo em direção a sala.

— Não estou falando disso, mãe! O que eram aqueles brilhos? — perguntei de maneira mais incisiva, indo atrás dela.

— Brilhos? — era uma tentativa frustrada de mudar de assunto. Ela fingia procurar algo na estante próxima a televisão, revirando as coisas, abrindo e fechando a mesma porta algumas vezes.

— Que saíam daquele frasco e dá sua mão quando a senhora soprou antes de tocar na marca no braço... — ela não me deixava terminar de falar.

— Como é? Qual brilho, Hass? Marca, qual marca? Não sei do que está falando! — disse ela enfurecida, sentando-se no sofá, arrancando os sapatos dos pés e jogando-os longe.

— A senhora me disse que mentir é errado! — meu tom de voz havia se alterado.

— Hass, vá para o seu quarto — gritou ela, algo que raramente fazia. Levantou-se de uma só vez. Respirando fundo para se controlar. Dava para notar que a paciência dela estava por um fio.

— O que... — ela nem esperou que eu completasse a frase.

— Hass, pro seu quarto! Não vou repetir! — ela bradou num tom de voz ainda mais alto. Tinha uma ferocidade estranha em sua voz que fez meu coração gelar. Era melhor obedecer naquele momento, mas isso não seria esquecido.

Eu estava com muita raiva, podia sentir meu corpo pulsar em razão disso. Meus punhos estavam cerrados com tanta força que minhas mãos tremiam.

Subindo os degraus da escada senti algo escorrendo pelos meus dedos. Era sangue. Três gotas caíram no chão.

Abri a mão lentamente, de olhos arregalados, incrédulos, observando minhas unhas ensanguentadas. Elas estavam grandes, grossas, pontiagudas e escuras.

Ainda no meio da escada, uma troca de olhares intensa aconteceu. Durante alguns segundos nos encaramos fixamente e pela primeira vez pude notar um sentimento que até então não havia manifestado em minha mãe: era medo!

Os dias se passaram e eu permaneci refletindo sobre o que havia acontecido. A vergonha que eu sentia por ter sido exposto àquela situação já havia cessado, mas a minha curiosidade não.

Questionava o porquê daquela marca negra e como eu havia parado o braço da professora. De onde veio tanta força?

Olhava meu reflexo no espelho, fazendo poses, tentando ver os músculos dos meus braços, para saber se eram tão fortes assim. Foi uma cena triste, nessa idade parecia que meus músculos estavam por dentro dos ossos.

Sem dúvida, o que mais me martirizava era tentar entender por qual motivo minha mãe estava mentindo daquele jeito pra mim. Do que ela tinha medo? O que estava acontecendo comigo?

A vida em casa ficou tensa. Nos dirigíamos a palavra apenas quando necessário. O que aliviava essa tensão era que minha mãe trabalhava em dois turnos no hospital da cidade e não ficava muito tempo dentro de casa.

Lembro que depois daquele episódio na escada, no qual acabei me cortando com minhas próprias unhas, comecei a observá-las com mais cuidado.

Na manhã seguinte, elas já estavam normais, talvez um pouco maiores. Eu as inspecionava de perto, procurando quaisquer vestígios do que havia acontecido, mas não via nada.

Nos dois primeiros dias, quando havia cansado de apenas observar, resolvi cortá-las. Foi aí que descobri algo interessante. Elas cresciam numa velocidade anormal! Não sei ao certo se foi por conta desse incidente ou se já eram assim, mas só agora eu havia reparado.

Logo após cortá-las, percebi que, depois de poucas horas, elas cresciam de volta uma fração considerável. No final do dia, elas voltavam ao tamanho de antes de serem cortadas.

Porém existia um detalhe. A cada novo corte, as unhas se tornavam mais grossas e mais resistentes. Chegou num momento que eu não conseguia mais cortar nem uma lasquinha delas.

No final do castigo, eu tinha um frasco cheio de unhas.

Terminando a suspensão, voltei ao colégio e a primeira coisa que fiz foi procurar pela professora para saber como estava.

Não cheguei a falar com ela diretamente, mas a vi pela fresta de uma porta, enquanto dava aula, berrando com outros alunos, sem faixa no braço.

Havia se recuperado.

No corredor, as pessoas me olhavam e cochichavam a meu respeito. Esse episódio com a professora foi o suficiente para que eu me tornasse, oficialmente, uma “má influência”, e isso fez os outros alunos se afastarem mais de mim.

Se tem um lado bom nisso tudo, seria esse, já que meu interesse em socializar com os outros tendia a zero. O resultado dessa história acabou me ajudando mais do que eu podia imaginar. Talvez até tivesse valido a pena passar por toda aquela vergonha.

Até então, parecia que essa fase da minha infância seria superada e eu seria uma criança normal, mas o que estava prestes a acontecer mudou tudo.

Cerca de quinze dias depois do primeiro incidente, outra coisa bem estranha aconteceu comigo.

Numa tarde de domingo, durante um passeio pelo parque com a minha mãe, resolvi sair para explorar um pouco as redondezas, nada muito longe, sempre perto, pois ela não me perdia de vista nem um momento sequer. Éramos apenas nós dois desde que me lembro.

Enquanto vagava próximo a algumas árvores, observando a trilha que as saúvas faziam e chutando algumas pedras para longe, escutei um som que lembrou o choro de cachorro. Apurei a audição e ergui a cabeça tentando ver de onde vinha. Não demorou muito e ouvi alguns ganidos desesperados vindos de longe. Afoito parti na direção do som.

Um pouco mais à frente, avistei um garoto que apedrejava um cachorro de rua. O animal estava com as costelas em evidência e a barriga tão murcha que se curvava para dentro e parecia tocar em suas costas. O corpo coberto de sarnas, com manchas escuras, só sustentava pequenos tufos de pelos. Ele estava tão debilitado, que se encolheu num canto, tremendo, com as orelhas baixas e com o rabo entre as pernas, enquanto chorava.

Ele havia desistido de lutar, mas antes de se entregar ao abraço frio da morte, ele mirou em minha direção com aqueles olhos chorosos, implorando por ajuda. Um pedido de socorro para sua alma.

Talvez a sua desistência pela vida tenha sido o jeito mais fácil que ele encontrou de se livrar da sua agonia.

Sua tristeza me comoveu e resolvi confrontar aquele garoto. Eu já tinha o visto algumas vezes, pois frequentávamos a mesma escola. Ele deveria ter seus treze ou quatorze anos e sempre foi o típico valentão, porém nunca tivemos atrito.

— Qual é o seu problema? — gritei com um nó tão forte na garganta que parecia ter um limão preso ali.

Ao ser confrontado, o garoto congelou com a expressão de susto em seu rosto, boquiaberto, ficou tão pálido quanto uma ovelha, deixando cair a pedra que segurava em sua mão. Ele estava num canto remoto do parque e não imaginou que alguém pudesse encontrá-lo.

Logo voltou ao normal quando percebeu que era apenas outra criança, começou a rir e a debochar.

— Olha quem está aqui, se não é o maluco da escola! O que vai fazer comigo? Me bater igual fez com a professora? Acha que consegue? Tenta a sorte, idiota! — ele abaixou e pegou mais uma pedra, olhou para o cachorro e para mim e ameaçou jogar a pedra no cão.

— Não faz isso! — gritei mais uma vez.

— Quem vai me impedir? Você? O maluco da escola vai me impedir? — perguntou em tom de deboche enquanto abaixava para apanhar a pedra que deixara cair.

— Vou! — respondi firme.

Foi o suficiente para que ele corresse na minha direção e me atingisse com um soco no rosto. Eu caí deitado no chão, mas consegui reagir. Chutei o joelho dele com força e ele se desequilibrou caindo de cara no chão.

Quando levantou o rosto da grama, seu nariz estava ensanguentado, pingando sobre sua camisa de time. Trocamos socos e chutes, enquanto rolávamos no chão numa briga acirrada.

Por mais que eu buscasse me conectar com algo mais poderoso, atrás daquela força, da selvageria, não consegui.

O único golpe que fez algum efeito contra o garoto foi um arranhão que eu dei em seu rosto. Ele parou de tentar me socar e levou as mãos em cima do machucado. Rapidamente se pôs de pé, pegou uma pedra grande e me atingiu na cabeça. Nesse momento, minha visão embaçou, um som agudo tomou conta dos meus ouvidos, mas antes de apagar completamente, pude escutar ele gritar. Tudo ficou preto.

Acordei numa cama de hospital, com o cheiro de éter fortíssimo invadindo o meu nariz. Numa poltrona azul marinho, gasta e pouco acolchoada do meu lado direito estava a minha mãe, a expressão de cansaço em seu rosto era tão marcante, que mesmo quando ela estava dormindo era possível perceber. Com a testa franzida e com as olheiras tão escuras que lembrava um panda, ela dormia agarrada com um lenço e com uma manta que mal lhe cobria as pernas.

Havia uma TV antiga fixada na parede, mas com as minhas vistas embaçadas e com o incomodo da claridade, era impossível assistir a qualquer programa. A única coisa que percebi da imagem era estava em preto e branco. Mas pelo som, passava o jornal local.

Eu estava tão cansado que resolvi dormir outra vez, no entanto, antes, fiquei pensando naquele cachorro que tentei defender e o que tinha acontecido com ele, e que fim teria tomado o outro garoto.

Com essas ideias em mente eu acabei dormindo. Pouco tempo se passou e um pesadelo tomou conta do meu sono até então tranquilo. Esse seria um dos maiores traumas da minha infância.

Nesse pesadelo, a briga não tinha acabado no momento em que fui atingindo na cabeça. O garoto continuou a me bater até que parte do meu crânio se abriu e o meu cérebro ficou exposto, com pequenas partes dele compondo o chão. O cachorro que tentei defender se transformou num monstro. Sua boca era enorme e seus dentes pontiagudos se estendiam de uma orelha a outra. Ele babava tanto que gotejava no chão. A língua negra para fora da boca continha feridas das quais vermes brancos brotavam aos montes.

Esse monstro se aproximou de mim e começou a me devorar, ainda vivo, mordia e arrancava partes dos meus pés, subindo em direção a minha coxa, rasgando a pele, os músculos e tendões. A dor era excruciante.

Eu não conseguia me mover por mais que tentasse, estava paralisado.

Acordei gritando em desespero.

Minha mãe saltou da poltrona, assustada com meus gritos, mas se recompôs e veio me ajudar.

— Hass! Hass? O que foi? — os olhos de panda dela estavam arregalados.

— Um sonho… ruim. — por mais apavorado que eu estivesse, não queria preocupá-la mais.

— Está tudo bem agora, venha aqui. — ela me abraçou forte. Estava seguro em seus braços.

Agora a minha visão estava nítida, porém havia algo estranho no quarto. O ar estava diferente. A atmosfera em volta de mim havia mudado. Por mais que eu buscasse, não sabia identificar o que era.

Um médico baixo e gordo entrou no quarto, enquanto eu analisava tudo à minha volta.

— Está procurando a saída, campeão? — perguntou ele, passando pela porta e vindo em nossa direção.

— Oi? Não senhor. — respondi voltando minha atenção para ele. Porém, às vezes, eu ainda passeava com os olhos pelo quarto, como se fosse encontrar a resposta escondida entre os rejuntes da cerâmica do chão ou entre as falhas da pintura na parede.

— Lúcia, como você está? Conseguiu dormir um pouco nessa poltrona dura? — virando-se para minha mãe.

— Oi doutor, consegui… um pouco. — respondeu estufando o peito, como se tentasse colocar as costas de volta no lugar. Sua voz estava fraca e cansada.

— E aí, campeão! Como está se sentindo? — o médico me perguntou, com um sorriso no rosto.

— Me sinto meio estranho. — respondi pensativo.

— É normal se sentir meio esquisito depois de acordar de um coma. — disse calmamente.

— Coma… O que é coma? — assustado, perguntei a ele. Agora ele tinha a minha total atenção.

— Devido ao seu acidente, você dormiu por três dias inteiros, Hass! — o médico me respondia prontamente.

— Como assim? — eu o encarava incrédulo, me ajeitando na cama, sem sua direção.

— A pancada que você recebeu na cabeça foi bem forte, mas agora você está bem! É isso que importa! — ele respondeu de uma maneira que fazia a situação parecer mais simples do que realmente era.

— Eu dormi três dias, mãe? — perguntei, boquiaberto, incrédulo e com os olhos quase saltando as órbitas para ela.

— Sim, Hass, você dormiu por três dias. — ela respondeu com a voz fraca.

Parei por um instante, para processar tudo que estava acontecendo. Meu rosto parecia ter se petrificado ao ouvir minha mãe confirmar. Cocei a testa e fechei a boca quando percebi que estava tão aberta que parecia um poço.

— Então eu não tenho que dormir por uma semana? — perguntei a ele, enquanto minha cabeça irrompeu numa coceira impossível de resistir.

— Hahahaha não é assim que funciona campeão! — ele respondeu sorridente. — Cuidado para não passar a unha no corte, os pontos estão recentes! — disse ele quando percebeu que eu me coçava com intensidade.

— Corte? Onde? — passei a mão no cabelo, procurando.

— Esse aqui, deixa eu te mostrar — pegou minha mão e guiou até o lugar.

— Não consigo sentir nada. — disse ansioso.

— E agora? — questionou o médico franzindo a testa.

— Ainda não, doutor. — respondi, forçando um pouco mais a ponta do dedo contra o couro cabeludo tentando sentir a textura do corte.

— Sério? Está bem aqui ao lado do... cadê o... mas... — ele não conseguia completar a frase.

— O que foi doutor? — minha mãe, percebendo a mudança na fala do médico, se aproximou preocupada, tentando ver.

— Nossa, o corte dele está quase cicatrizado. Eu suturei aqui três dias atrás. — o médico disse me desembrulhando, parecia procurar algo ao meu redor. — Os pontos caíram! — disse pegando os pedaços de uma linha preta, ligeiramente rígida, que estavam emboladas no meu travesseiro.

— Isso é bom? — perguntei confuso.

— Isso é incrível, campeão! Parece que você vai voltar para escola antes do esperado! — ele respondeu muito empolgado. Gesticulando com a linha na mão, mas descartou rápido quando percebeu que nossa atenção estava direcionada a ela.

— Estamos liberados, doutor? — minha mãe perguntou ansiosa. Ela estava com pressa em me levar para casa.

— Lúcia, você sabe que esse não é protocolo, ele precisa ficar em observação por mais alguns dias antes de liberarmos ele. — respondeu o médico num tom mais sério, retirando a prancheta que estava no suporte ao pé da cama.

— Eu sei, mas será que não tem um jeito de liberá-lo antes? Sabe que eu tenho experiência, se eu notar qualquer mudança, a mínima que seja, trago ele de volta para cá... eu prometo! — disse ela com as mãos juntas, implorando ao médico.

— Lúcia... — o médico estava reticente, com os olhos fixos na prancheta, parecia procurar por alguma coisa entre os resultados dos exames.

— Por favor! — disse ela com os olhos marejados.

— Tá certo Lúcia, agora pare de me olhar assim! E você vai ter que assinar um termo de responsabilidade! Você sabe que se algo acontecer com ele... — o médico foi interrompido por ela.

— Eu sei, eu sou responsável! — disse minha mãe, enérgica.

— Hum... Vou precisar fazer alguns testes com ele antes de liberar vocês dois. Espera lá fora um pouquinho? — o médico pediu gentilmente, colocando a prancheta de volta ao suporte.

Ela apenas acenou e saiu a passos lentos.

O médico realizou alguns procedimentos, que, segundo ele, eram de rotina. Com uma pequena lanterna em mãos, abriu o meu olho esquerdo e iluminou a pupila. Logo em seguida, repetiu o procedimento no meu olho direito. Disse para seguir a luz, enquanto movia a lanterna na minha frente. Pediu para que eu me sentasse na cama e, com um martelinho, deu umas pancadinhas nos joelhos que reagiram com pequenos movimentos para frente.

Com um estetoscópio que, com certeza, ele tinha acabado de retirar de uma geladeira próxima, ele o posicionou em minhas costas, pediu para que respirasse fundo algumas vezes.

Durante o exame, mencionou que alguns sintomas como: visão turva e escurecida, enjoos e até mesmo diarreia poderiam surgir nos próximos dias, devido ao tempo em coma. Comentou ainda que poderia ter insônia durante essa semana, mas que era completamente normal. Porém se os efeitos perdurassem por mais de cinco dias, seria aconselhável voltar ao hospital.

Depois de, mais uma vez, olhar minuciosamente a ressonância da minha cabeça, decidiu nos liberar, mas não antes de obrigar minha mãe a assinar o termo de responsabilidade.

Quando finalmente chegamos em casa, minha mãe me perguntava o tempo inteiro se eu estava me sentindo bem, se não estava tonto ou enjoado. E mesmo confirmando que estava tudo bem, parecia que alguma coisa na minha voz despertava nela um sinal de alerta.

Toda essa situação era muito estranha para mim. Não sabia como me comportar com esse excesso de atenção repentina. Não que minha mãe fosse displicente comigo, mas tê-la me vigiando como gavião pairando no ar antes de dar um bote, era desconfortável. Toda vez que eu acreditava estar só, me assustava com ela a espreita num canto a me observar. Eu entendia a sua preocupação e ainda que sem sucesso, continuava a tentar tranquilizá-la de alguma maneira.

Os dias avançaram, e minha mãe foi melhorando gradativamente. Sua vigília incessante deu uma trégua. No entanto eu, por outro lado, piorei.

Não conseguia mais dormir de noite, aquele pesadelo que eu tive no hospital se tornou recorrente e mais intenso. Se tornou tão real quanto estar com os olhos abertos. Virou a minha tortura diária. Em alguns momentos, durante o dia, quando minha perna formigava, eu levava a mão imediatamente ao lugar para ter certeza que ainda estava lá. Estava ficando difícil suportar e ainda mais de esconder. Mal fechava os olhos e estava sendo espancado pelo outro garoto e, em seguida, os dentes pontiagudos do monstro perfuravam os meus pés, arrancando-os de uma só vez na altura do tornozelo, deixando tiras de peles dependuradas e os ossos da canela quebrados e expostos.

Mesmo com receio de preocupá-la, tinha que contar para a minha mãe o que estava acontecendo.

Numa noite, despertei saltando da cama, no susto, como se um choque elétrico tivesse percorrido meu corpo. Agitado, com a respiração ofegante e ensopado de suor, me levantei e fui em direção ao quarto dela. Eu estava cambaleando, parecia ter trago comigo uma parte das dores do pesadelo e junto com o cansaço, andar tornou-se uma tarefa árdua.

Quando passei pela porta e coloquei os pés no corredor, tive a nítida sensação de ser observado. Um frio percorria a minha espinha, os pelos da minha nuca se arrepiaram e eu travei ali mesmo.

Parado, pude sentir que alguém avançava em minha direção. Quanto mais perto chegava, mais a temperatura caía. Um frio congelante tomou conta do lugar em poucos segundos.

Algo sussurrou em meu ouvido, deu para sentir o ar que saía da sua boca tocar meu rosto.

Precisei de muito esforço para reunir um fio de coragem que me sobrava. Movi os olhos arregalados lentamente para esquerda, sem mexer um milímetro a cabeça.

Eu poderia jurar que vi um par de olhos vermelhos colados na lateral do meu rosto.

O susto me deu o pico de adrenalina necessário para correr e só parar quando visse minha mãe.

— Hass, o que foi? — ainda deitada e com os olhos quase saltando as órbitas me perguntava, quando cheguei correndo na porta do quarto dela.

— Oi mãe, tudo bem? Não foi nada não. — respondi acelerado olhando para o corredor e tentando disfarçar, enquanto o suor escorria pela testa.

— Você está se sentindo bem? — perguntou ainda congelada.

— Estou, mas... — respondi reticente.

— Mas o quê? Venha aqui! — começou a se ajeitar na cama e a expressão de preocupação lhe tomou o rosto.

— Estou tendo pesadelos todos os dias… não consigo dormir direito. — respondi com pesar no coração, com receio de deixá-la mal de alguma forma.

— Lembra do que o médico falou? É normal ter problemas para dormir no começo. Vamos para o seu quarto, vou ler uma passagem da Bíblia para você. Vai dormir num instante! — disse jogando a manta que a cobria para o lado, se levantando da cama apressadamente.

Minha mãe tinha sua fé e, apesar de não irmos à igreja com muita frequência, me lembro dela sentada ao meu lado na cama, lendo alguns versículos, até que eu pegasse no sono.

Sempre acreditei em Deus e que Ele poderia me ajudar quando precisasse. Mas, por mais que eu pedisse... na verdade implorasse, não funcionou para mim.

Os dias avançaram e perdi a conta de quantas vezes eu me ajoelhei em busca de ajuda. Os calos não demoraram a surgir e mesmo quando se transformaram em feridas, eu não desisti. Sentava em minha cama, consumido pelo desespero, com os olhos marejados e com um fio quase inexistente de esperança, esperando a ajuda que nunca veio. O tormento continuava.

O sentimento de abandono era sufocante.

A entidade que eu acreditava ser real parecia ter virado as costas para mim. Questionava sobre a sua veracidade ou se apenas não se importava comigo. Talvez tivessem muitos pedidos na frente do meu.

Voltamos ao hospital algumas vezes, muitos remédios foram receitados, mas nenhum surtia efeito.

Minha mãe, percebendo a minha degradação física pela privação do sono, resolveu me levar a uma psicóloga.

Na minha primeira sessão, Hestefânia, a psicóloga, demonstrou ser uma senhora gentil e disposta a me ajudar. Não me esqueço da expressão em seu rosto quando me viu pela primeira vez. Os meus olhos fundos, o corpo fraco e muito esforço para ficar em pé.

Deitei-me no divã e em poucos segundos eu dormi. Foram exatos 40 minutos de sono. E de repente eu acordei gritando.

Motivo? Não sei. Não me lembro do que aconteceu. Mas me sentia melhor, como se tivesse dormido por uma eternidade.

Olhei em volta e só havia eu e a psicóloga. Minha mãe aguardava do lado de fora do consultório.

Hestefânia me olhava fixamente

— Hass, você está bem? Com o que você estava sonhando? — perguntou esboçando um sorriso aconchegante, segurando um bloco de anotações preto em uma das mãos e na outra uma caneta dourada.

— Estou bem. Eu dormi? — perguntei sem saber o que havia acontecido.

— Sim… um pouquinho. Com o que você sonhava Hass? — insistiu na pergunta, com o olhar fixo em mim.

— Não me lembro. — assim que respondi, ela escreveu algo no seu bloco de anotações.

— Só mais uma perguntinha. Com quem você aprendeu latim? — perguntou arqueando as sobrancelhas, parecia muito interessada. — sua dicção para a língua é incrível! — elogiou.

— Latim? O que é isso? — confuso. Nessa idade eu não fazia ideia do que se tratava.

Mais algumas anotações e ela encerrou a nossa primeira sessão.

Dessa vez, eu esperaria lá fora para que ela conversasse em particular com minha mãe.

A porta ficou entreaberta, pouco mais de três dedos, no entanto era o suficiente para vê-las conversando com perfeição. Primeiro eu resisti, mas depois cedi à minha curiosidade e fui espiar. Não dava para escutar com muita clareza o que elas conversavam, mas deu para ler os lábios da psicóloga dizendo a palavra latim e minha mãe acenando negativamente.

Mas o que, afinal de contas, seria latim? Fui embora com essa dúvida.

Meu atestado médico venceu na manhã seguinte e eu tive que retornar às aulas.

No primeiro dia de volta à escola, como sempre, todos me olhavam sorrateiramente. Já estava acostumado com isso e não me incomodava mais.

No intervalo, sentado no mesmo banquinho de sempre, algo chamou a minha atenção. O valentão, o garoto com o qual tinha brigado, não estava mais por lá.

Fiquei com isso na mente, me questionando o porquê, mas precisava focar nas aulas, afinal eu estava há quase duas semanas fora. Havia uma montanha de trabalhos para entregar e muitos assuntos novos para aprender.

Próximo ao meio-dia, tocou o sino do último horário. Eu arrumava as minhas coisas para poder sair, quando vi pela janela da sala o cachorro que tentei salvar no outro dia. Ele estava diferente. Robusto, as costelas já não ressaltavam tanto sobre a pele e agora dava para ver que, de fato, ele tinha uma barriga. Acredito que alguém estava cuidando dele ou ele havia aprendido a se virar incrivelmente bem. Tive que esfregar os olhos para ter certeza de que era real. Inacreditável!

Saí correndo desesperado para alcançá-lo, mas quando cheguei ao lado de fora, não o avistei mais. Talvez tenha passado para agradecer... talvez... E por um instante eu esqueci que ele figurava em meus pesadelos como um terrível monstro.

Minha mãe acenava do portão, chamando para ir embora. Apesar de a escola ficar muito próxima de casa, apenas dois quarteirões de distância, após o incidente, eu não andava sozinho para lugar algum.

Quatro dias depois, à tarde, tinha mais uma consulta marcada com a psicóloga. Estava animado para ir, pois lá eu conseguia dormir sem pesadelos, nem que fosse por pouco tempo.

Mesmo muito cansado, dessa vez foi diferente. Eu não consegui dormir, senti o divã diferente, parecia mais rígido. Acho que era outro, pois não me lembrava daquela pequena curva que ele fazia perto dos pés. Se bem que da outra vez que estive no consultório eu só desmaiei e não tinha notado detalhe algum, nem mesmo a cor. A psicóloga percebeu a janela de oportunidade e não a desperdiçou.

— Hass, vejo que hoje você resolveu me ajudar e ficou acordado! — esbanjava um sorriso no rosto.

— Eh. — disse timidamente. Ainda me ajeitando no divã buscando uma posição confortável.

— Quero te fazer algumas perguntas, tudo bem para você? — perguntou, se aproximando de mim.

— Tudo bem. — respondi positivamente, apesar de estar muito desconfortável com aquela situação.

— Hass, você reclamou para sua mãe que não estava conseguindo dormir por causa dos seus pesadelos. Preciso que me conte como eles são, acha que pode fazer isso? — perguntou, arqueando as sobrancelhas.

— Eh. — eu hesitei. A expressão no meu rosto havia mudado. Só de lembrar do pesadelo, eu tinha vontade de gritar, me dava calafrios só de imaginar. Ela percebeu a testa franzida e os lábios se comprimindo um contra o outro.

— Estou vendo que esse é dos brabos, hein? Mas não precisa ter medo, pode confiar em mim! — tinha algo no tom de voz dela que me transmitia segurança, paz, tranquilidade. Talvez eu pudesse confiar nela.

Eu queria falar, mas não conseguia. A verdade era que eu não sabia nem por onde começar a contar, ou como contar.

— Hass, confie em mim. O que você disser para mim, aqui dentro do consultório, ficará apenas entre nós. — disse ela, tentando me transmitir mais confiança.

— E minha mãe? — eu não queria que minha mãe soubesse.

— Apenas entre nós, Hass. Sua mãe não precisa saber de tudo que acontece aqui, apenas informo o básico e pego algumas informações com ela para entender melhor o contexto. — respondeu com um ar complacente.

— Doutora, é algo muito ruim, mas muito ruim mesmo — enfatizei para ela.

— Tudo bem, estou preparada, vamos lá. Pode começar. —disse ela com um sorriso amigável.

— Ok. No pesadelo eu volto ao momento da briga, onde eu defendia o cachorro. Porém a briga continua e o outro garoto bate na minha cabeça, cada vez mais forte. Minha cabeça se abre como uma melancia e meus miolos caem no chão. O cachorro vira um monstro gigante e começa a me devorar! Eu ainda estou vivo e não consigo fazer nada, nem mover, nem gritar. Só sinto dor, muita dor. Toda vez que eu volto para o pesadelo, ele fica mais real e a dor aumenta. — disse num ritmo frenético tentando me livrar logo da sensação ruim que isso me trazia, esfregando as duas mãos nas laterais do rosto, com o olhar fixo no chão, pernas encolhidas em cima do divã e me balançando o tempo inteiro. O coração acelerado e os olhos cheios de lágrimas. O pavor me consumia.

— Hass! Hass! Calma, respira! Olha para mim! — Hestefânia se pôs de joelhos na minha frente, segurando em meus ombros.

Ela pediu que eu inspirasse, prendesse a respiração por uns quatro segundos e soltasse devagar. Repeti o processo algumas vezes, até que gradativamente meu coração desacelerou, o medo deu uma trégua e eu me senti no controle de novo. Ergui a cabeça e a encarei.

— Hass, seus olhos… eles... — disse ela reticente.

— O que tem nos meus olhos? — por reflexo, eu os esfreguei.

— Ah… nada, pensei que. — ela me encarava como se procurasse algo no meu rosto.

Ela pegou um copo d’água e me serviu.

— Hass, eu sei que você passou por uma situação traumática e pesadelos são normais, porém os seus estão te afetando muito. Precisamos dar um jeito nisso. Concorda comigo? — perguntou num tom de voz vibrante.

Acenei positivamente com a cabeça.

— Vou precisar que você seja muito corajoso, tudo bem? — ela disse me encarando, como se pudesse ver através de mim.

— Tudo bem. — respondi receoso.

— Você consegue se lembrar de detalhes, como cor de camisa, se era dia ou noite e se o local da briga no pesadelo era o mesmo onde aconteceu o incidente? Feche os olhos por um momento, tente se lembrar. — quando ela me pediu para fazer isso, um frio intenso percorreu a minha espinha e um imenso NÃO berrava em minha mente, foi por pouco que eu não o deixei escapar na mesma intensidade em que pensava.

Fiz de novo aquele exercício de respiração que ela ensinou para conseguir conter o medo e me acalmar de novo. Funcionou, um pouco. Mesmo perto de ter outro ataque de pânico, havia em mim a vontade de resolver essa situação, não por mim, mas pela minha mãe. E foi pensando nela que encontrei as forças necessárias para fazer o que tinha que ser feito. Ainda que contrariando todos os meus instintos de não pensar nas imagens desse pesadelo, atendi o pedido da psicóloga.

— Eu estou aqui! Você não está sozinho. Vamos fazer isso juntos! — disse ela, tentando me dar algum conforto.

Assim que fechei os olhos para me lembrar, senti a mão fria dela segurando na minha. Foi como uma carga a mais de confiança para fazer.

Analisando o pesadelo de um outro ângulo, notei que o céu estava alaranjado, como num final de tarde. Havia muitas árvores no lugar, mas elas eram estranhas… não tinham folhas.

Reparei que no lugar dos olhos do garoto e do cachorro, saía uma fumaça cor de rubi, pareciam estar acesos.

“Por que eu não tinha notado essas coisas antes? E o que significava?”, pensei comigo.

— Hass, o que você viu? — perguntou ela. Nesse momento, percebi que Hestefânia estava um pouco longe de mim e não tinha como ser a mão dela sobre a minha.

No susto, eu abri os olhos de vez e saltei do divã.

— Hass, o que foi? — ela se aproximou de mim e segurou as minhas mãos. Pude perceber a diferença do toque.

— Não estávamos no parque na hora da briga, doutora, o céu era laranja e os olhos deles… eh… eram vermelhos! — falei rapidamente, para poder ir embora.

Ela anotou tudo que eu havia dito.

— Hass, isso é um progresso! Você conseguiu notar as coisas de um outro ponto de vista! — disse ela, enquanto eu saía pela porta.

— Obrigado, doutora. — respondi, tomando minha mãe pelo braço e praticamente arrastando-a para ir embora.

Mais uma sessão encerrou e novamente fui para casa com mais algumas interrogações.

À noite, quando fui me deitar, resolvi prestar mais atenção ao pesadelo. Meu objetivo era observar todos os detalhes que eu ainda não tinha captado por causa do medo.

Quando ele surgiu, notei que eu havia mudado de papel. Não era mais a vítima indefesa e sofredora, mas sim, um espectador de um acontecimento bizarro.

A simples mudança de postura me fez perceber que não havia apenas duas pessoas e um cachorro no pesadelo, mas inúmeras sombras orbitavam o acontecimento. Todos tinham aquela fumaça vermelha no lugar dos olhos.

O local do pesadelo era um parque, mas não o mesmo. Este era muito sombrio, como se uma guerra tivesse acontecido ali. As árvores sem folhagem tinham os troncos e galhos tão escuros que se confundiam com as sombras.

Enquanto eu analisava o pesadelo como espectador, a ação parou e a atenção voltou-se para mim. Na hora meu coração disparou. Todas as sombras se uniram, formando um enorme círculo, movendo-se rapidamente, pareciam cochichar algo. Houve um trovão ensurdecedor e do meio delas emergiu uma outra maior, fazendo com que as que compunham o círculo se tornarem minúsculas, quando colocadas em perspectiva.

— Princeps... Lycanthropy... — com a voz rouca e sussurrada, apontava para mim e repetia incessantemente.

As outras sombras começaram a imitá-la, formando, assim, um grande coral macabro. Essa que parecia ser a líder, que estava no meio do círculo, parou por um instante, abaixou a cabeça e me olhou de uma maneira diferente. Agressividade, ódio e morte. Era possível sentir tudo isso só de olhar para ela.

Em questão de segundos, ela saltou em minha direção e transpassou meu corpo. Acordei assustado ao cair da cama.

A expressão Princeps Lycanthropy ficou marcada na minha mente. Era como se aquele coral estivesse dentro da minha cabeça e repetisse a mesma coisa o tempo inteiro.

Continuar lendo
img Baixe o aplicativo para ver mais comentários.
Mais Novo: Capítulo 1 1   12-29 02:44
img
1 Capítulo 1 1
29/12/2021
Baixar App Lera
icon APP STORE
icon GOOGLE PLAY