O sangue da mulher no chão havia se espalhado pelo estofado de suede bege das poltronas e deixado uma mancha enorme e escura no tapete claro.
Ela tinha um porte atlético como uma amazona, o corpo moldado em horas diárias de academia e uma altura que contribuía ainda mais para a ideia de lutadora feroz. Ao cair, derrubara uma mesinha de canto, mandando as esferas decorativos de cerâmica e o relógio pelos ares. Quanto ao relógio, não havia o que fazer, pois o vidro do mostrador digital se partira em dois. De qualquer modo, ele devolveu os objetos aos lugares e observou o relógio, querendo vê-lo mexer. O fato é que ansiava por algum sinal de normalidade, uma evidência de que fora daquele quarto a vida continuava sua rotina implacável.
Entretanto, os mostradores continuaram fixos, mas numa imagem como de um espelho rachado em vários lugares, formando um vinte e dois e, provavelmente, um dezessete de uma noite fria e escura.
Bruno preparou-se para tomar as atitudes necessárias. Em quatro anos como chefe de segurança do complexo Ibiza, pela primeira vez via-se obrigado a checar um cadáver. E o irônico era que ele mesmo o produzira.
Ajoelhado junto ao corpo, ainda segurando a maldita arma na mão, procurou sentir o pulso da vítima. Nada. Então auscultou o coração, esperando encontrar não sabia bem o quê. Um indício de vida, talvez? Ou a prova definitiva de que a mulher estava acabada de uma vez por todas? Ao levantar-se, acabou sujando a camisa e a barra da calça de sangue.
"Droga, droga, droga!", pensou irritado. Talvez devesse sentir pesar pela morte dela, mas não. Na verdade, considerava-se muitas coisas, menos hipócrita. O que lamentava era a maneira como os acontecimentos haviam se desenrolado.
- Droga! - praguejou, encarando a pistola semi automática Cal. .380, que continuava segurando. A arma estava registrada em seu nome. E isso não era bom.
Será que devia dar um jeito de livrar-se dela? Mudar de roupa? Limpar as impressões digitais espalhadas pelo quarto? Para um homem acostumado a lidar frequentemente com crimes, criminosos e polícia, estava agindo como um novato inexperiente, atordoado demais para saber o que fazer.
Precisava de tempo para pensar e se decidir por uma linha de ação. Só que não seria possível, concluiu, ao ouvir passos rápidos no corredor.
- Polícia - avisou uma voz dura, logo antes de a porta ser aberta num arranco.
Imediatamente Bruno reconheceu o recém-chegado. Matias Silva. E seu parceiro, Jonas sei lá o quê, um sujeito quieto, com um bigode despenteado, como uma vassoura velha e duas entradas marcantes que tornavam sua testa mais proeminente. Claro que os dois também reconheceram Bruno.
Silva olhou o corpo estendido no chão e assobiou baixo.
- Apenas mais um dia de trabalho tranquilo no Ibiza Palace! - exclamou, rindo da própria piada.
Em outras circunstâncias, Bruno teria respondido ao gracejo com um sorriso, pois aprendera a entender o tipo de humor ácido que alguns policiais costumam usar para se defenderem do horror diário que a rotina da profissão lhes impõe. Hoje à noite, entretanto, mal conseguira prestar atenção ao comentário.
- Estou surpreso por encontrá-lo aqui tão rápido - Silva continuou, recolocando a arma no coldre.
- Por quê? - Bruno sentia a garganta seca e as palmas das mãos cobertas de um suor gelado.
O motivo era um só: medo. Qual fora a última vez em que experimentara aquela sensação desconfortável?
- Você está ficando resfriado? - Silva insistiu, percebendo a voz rouca do outro.
- Acho que sim. - disse, rápido demais, ao que resolveu emendar - Por que ficou surpreso ao me encontrar aqui?
- O pessoal da recepção nos informou que não tinha conseguido contatá-lo. Disseram que você não estava respondendo ao rádio. Já que o consideravam incomunicável e também era a noite de folga de Mateus, fomos chamados. - Finalizou, ao mesmo tempo que se inclinava em direção ao corpo da vítima.
Jonas, o parceiro quieto e de bigode espetado como uma vassoura, que passou todo o tempo encarando-o, apontou para a arma, ainda na mão de Bruno, antes de indagar.
- Você a encontrou aqui?
- Se a encontrei aqui? - ele repetiu, sentindo-se como alguém agindo em câmara lenta, sempre um passo atrás da ação. Uma gota quente de suor começando a escorrer por sua tez fria.
- É - Silva retrucou, uma expressão irritada começando a aparecer no rosto. - A pistola na sua mão. Essa mesma sobre a qual acabou de esparramar suas impressões digitais.- Levou uma das mãos à nuca, enquanto olhava o cenário de modo geral - Puxa, você sabe que não se deve tocar em nada da cena do crime sem usar luvas!
- O assassino largou a arma aqui? - Inquiriu Jonas novamente
De repente as coisas começaram a fazer sentido. Claro que Silva e Jonas haviam concluído que ele estava ali pelo mesmo motivo pelo qual a polícia fora acionada. Alguém devia ter ouvido o tiro e avisado à recepção, que, por sua vez, não conseguira localizá-lo. Afinal, diante de tudo o que acontecera, não percebera sequer o barulho insistente do rádio preso à cintura.
Os dois policiais achavam que sua presença no quarto devia-se ao cargo que ocupava.
Naturalmente cabia ao chefe de segurança do hotel investigar o acidente. Até então, parecia não ter lhes passado pela cabeça que ele pudesse estar ligado ao homicídio. Chegaram mesmo a lhe fornecer uma explicação para o fato de suas impressões digitais estarem na arma. Fora uma atitude idiota tocar em algo na cena do crime, porém não seria a primeira vez que alguém fazia uma bobagem dessas.
"Talvez pudesse levar a farsa adiante", pensou agarrando-se a uma ponta de esperança.
Que os agentes concluíssem o óbvio. Sairia dali e deixaria toda a confusão nas mãos da polícia. E então, as investigações começariam. No mesmo instante suas esperanças esvaneceram.
Bruno respeitava a polícia de Copacabana e sabia como os agentes trabalhavam duro para resolver os casos de homicídio. Eles iriam varrer aquele quarto de hotel em busca de impressões digitais, fios de cabelos e outras evidências. Logo saberiam quem pusera os pés ali dentro e vigiariam os movimentos dos suspeitos, vinte e quatro horas por dia. A porta para a vida e o passado de Pamela não tardaria a ser aberta. Seria fácil descobrir o motivo que trouxera a vítima ao local do crime. E a partir da análise dos inimigos da mulher assassinada, chegariam ao matador.
A possibilidade de que isso viesse acontecer deixava-o apavorado. Bruno sabia que não suportaria os dias de expectativa e preocupação, temendo que a verdade revisitasse. Não, não podia permitir que algo assim acontecesse.
Havia uma única maneira de tomar o controle da situação nas mãos.
- Você quer nos dar seu depoimento agora? - Silva perguntou, num tom tranquilo e natural, enquanto seu parceiro fazia anotações - Ou prefere esperar a chegada dos rapazes do departamento de homicídios?
- Nenhum dos dois - Respondeu, decidido quanto à atitude a tomar. - Quero um advogado.
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